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07 outubro 2011

Odontologia em Pacientes Portadores de Dispositivos Cardíacos Eletrônicos Implantáveis (DCEI)


Autores: Marcelo MARRAI, Otaviano SILVA JÚNIORI, Vanessa Caldeira PEREIRAII, Danilo Marchesi MARCUSSIII, Tatiana Machado Provasi CUNHAII, Celso Salgado de MELOIII

Descritores: procedimentos odontológicos, DCEI. 

RESUMO:
Em portadores de DCEI, as orientações sobre complicações associadas a procedimentos odontológicos em geral estão relacionadas ao tipo de anestésico utilizado e à adoção de medidas profiláticas contra a endocardite infecciosa. Anestésicos locais que contém vasoconstritores em sua fórmula possuem como principal vantagem a absorção lenta, o que reduz sua toxicidade e aumenta o efeito desejado. Além disso, vasoconstritores não adrenérgicos, que não provocam estimulação catecolaminérgica no sistema cardiovascular, não geram a maioria das complicações decorrentes da anestesia local em procedimentos odontológicos e que restringem seu uso em cardiopatas. Este artigo faz uma revisão do uso de anestésicos locais, com e sem vasoconstritores, em cardiopatas, bem como das recomendações e estudos sobre a profilaxia contra a endocardite infecciosa em procedimentos dentários.


INTRODUÇÃO

Em portadores de DCEI, as orientações básicas para redução do risco de complicações associadas a procedimentos odontológicos estão relacionadas ao tipo de anestésico utilizado, ao vasoconstritor presente em sua fórmula e à profilaxia contra endocardite infecciosa.


HISTÓRICO

A cocaína foi primeira substância usada como anestésico local. Em 1884, Sigmund Freud e Karl Koller utilizaram-na para anestesiar a conjuntiva e Halstead, para bloqueio do nervo mandibular. Sua substituta sintética, a procaína, foi produzida em 1905, com base no trabalho de Einhorn et al., e é considerada o protótipo das drogas anestésicas locais1.


CARACTERÍSTICAS E APLICAÇÕES DOS ANESTÉSICOS LOCAIS

Anestésicos locais, em concentrações apropriadas, bloqueiam a condução nervosa no sítio de aplicação1. De acordo com sua estrutura química, podem ser classificados em ésteres ou amidas e, segundo a duração da ação, em de ação curta, intermediária e longa.

Na odontologia, as drogas anestésicas mais utilizadas são a lidocaína, a prilocaína, a mepivacaína e a bupivacaína2, todas amidas com duração intermediária, exceto a bupivacaína, que possui ação longa.


OS VASOCONSTRICTORES

Os vasoconstritores são componentes importantes das soluções anestésicas. No passado, as desvantagens a eles atribuídas em geral eram decorrentes de uso inadequado, como injeções intravasculares, concentrações e volumes elevados, aplicações rápidas e intoxicação por superdosagem. Hoje, são considerados praticamente indispensáveis em soluções anestésicas e têm como principal vantagem propiciar a absorção lenta do sal anestésico, o que reduz a toxicidade e aumenta a duração, possibilitando o uso de quantidades menores, com maior efeito anestésico3.

As substâncias vasoconstritoras pertencem a dois grupos farmacológicos: as aminas simpaticomiméticas e as análogas à vasopressina. As mais comuns são a adrenalina (epinefrina), a noradrenalina (norepinefrina), a fenilefrina e a octapressina (felipressina).


A FELIPRESSINA

A felipressina, hormônio sintético similar à vasopressina e constituinte de soluções anestésicas cujo sal é a prilocaína, não age em receptores adrenérgicos. Portanto, não produz alterações significativas na frequência cardíaca4. Sua ação direta na musculatura vascular lisa reduz a circulação sanguínea local e, nas quantidades reduzidas utilizadas na anestesia local, atua na circulação venosa e não tem efeito arterial, cardíaco ou potencial arritmogênico5,6. Sua meia-vida foi calculada em torno de 4 a 7 minutos e sua vida biológica, em 18 minutos, variando de 16 a 20 minutos7. Em baixas concentrações, não aumenta a toxicidade endovenosa das soluções de prilocaína. A isquemia produzida por ela não é seguida de hipóxia tecidual, como ocorre com a adrenalina e a noradrenalina8. Embora possua ação vasoconstritora inferior à da adrenalina, exerce ação local similar em termos da duração do efeito anestésico9.


COMPLICAÇÕES DA ANESTESIA LOCAL DURANTE O TRATAMENTO ODONTOLÓGICO

As complicações da anestesia local em procedimentos odontológicos incluem taquicardia, síncope, angor pectoris, hipotensão postural, infarto agudo do miocárdio, confusão mental, broncoespasmo e reação anafilática10. Várias delas podem ser provocadas por estimulação catecolaminérgica sobre o sistema cardiovascular, o que justifica a restrição ao uso de vasoconstritores adrenérgicos em cardiopatas.

Já os vasoconstritores não adrenérgicos, em dosagens adequadas e aplicados corretamente, aumentam a intensidade e a duração do efeito anestésico, por aumento do tempo de contato com as células da membrana nervosa, diminuem a toxicidade do anestésico, em razão da maior lentidão da reabsorção sistêmica, e reduzem a hemorragia local durante o procedimento. Dessa maneira, facilitam a intervenção e diminuem o estresse do paciente11.

Em um estudo comparativo entre anestésicos locais, com ou sem vasoconstritor, Cáceres avaliou um grupo de pacientes com doença de Chagas e outro com doença arterial coronariana, portadores de arritmia ventricular complexa ao Holter (>10 EV/h e TVNS). Concluiu que o anestésico com vasoconstritor não adrenérgico pode ser utilizado com segurança em pacientes chagásicos e coronariopatas com arritmia ventricular complexa12.

Vanderheyden et al.13 avaliaram efeitos do tratamento odontológico em 20 pacientes coronariopatas que receberam anestesia local com adrenalina na concentração de 1:100.000, sem que houvesse isquemia miocárdica durante o procedimento.

Conrado14 avaliou 54 coronariopatas submetidos a exodontia sob anestesia local, sem e com vasoconstritor (adrenalina 1:100.000). Verificou que o procedimento realizado com anestésico com vasoconstritor não trouxe riscos isquêmicos adicionais quando realizado com boa técnica e manutenção do tratamento farmacológico prescrito pelo cardiologista.


RECOMENDAÇÕES PARA PROFILAXIA DE ENDOCARDITE INFECCIOSA

A American Heart Association (AHA) publica recomendações para prevenção da endocardite infecciosa há mais de 50 anos. Desde a primeira edição, em 1955, várias modificações foram efetuadas, sendo que a última revisão foi realizada em 2007. Atualmente, as recomendações de profilaxia antimicrobiana contra endocardite em pacientes cardiopatas submetidos a procedimentos que envolvem risco de bacteremia baseiam-se no fato de que esta causa endocardite.

Estreptococos viridans fazem parte da flora oral normal, da mesma forma que enterococos nos tratos urinário e intestinal. Tais microorganismos são sensíveis aos antibióticos recomendados para a profilaxia. Em experimentos com animais, o uso profilático de antibióticos previne a endocardite por estreptococos viridans, cuja bacteremia tem correlação com procedimentos dentários, e por enterococos.

O grande número de casos já relatados comprova a correlação entre procedimentos dentários e endocardite infecciosa. Entretanto, não há comprovação científica até o momento que justifique a profilaxia por antibióticos durante todos os procedimentos odontológicos. Existem situações especiais em que determinadas cardiopatias e condições clínicas facilitam o surgimento da endocardite e, nesses casos, indica-se a profilaxia antibiótica em procedimentos dentários.


RESULTADOS DE ESTUDOS CLÍNICOS DE PROFILAXIA DE ENDOCARDITE INFECCIOSA EM PROCEDIMENTOS DENTÁRIOS

Não existem estudos prospectivos randomizados e controlados para avaliar a eficácia do uso profilático de antibióticos para prevenir a ocorrência de endocardite infecciosa em pacientes submetidos a procedimentos dentários. Publicações retrospectivas ou prospectivas de estudos de casos-controle são limitadas pela baixa incidência de endocardite infecciosa, que requer grande número de pacientes para obter significância estatística, pela grande variedade das cardiopatias de base, pela multiplicidade de procedimentos dentários e diferentes características das doenças bucais. Tais limitações dificultam a interpretação dos resultados de estudos publicados sobre o tema (quadros 1 e 2).




CONCLUSÕES

O uso de vasoconstritores não adrenérgicos como a Felipressina se mostrou seguro em pacientes chagásicos e coronariopatas com arritmia ventricular complexa. Apesar de não terem sido estudados portadores de DCEI, este dado é muito relevante para as orientações nesse grupo de pacientes.

De acordo com as evidências atuais, a presença isolada do DCEI, sem as condições cardíacas listadas no quadro 2, não constitui indicação para o uso de antibióticos para prevenir a endocardite infecciosa em procedimentos odontológicos. É importante ressaltar que as condições de saúde bucal no Brasil são diferentes daquelas observadas em países desenvolvidos e tendo-se em vista a relação custo-benefício da profilaxia para endocardite bacteriana, esta medida torna-se uma opção muito interessante. Em função destes motivos, há vários serviços que orientam a sua utilização rotineiramente em portadores de DCEI a serem submetidos a procedimentos odontológicos.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1 - Goodman G. Bases farmacológicas da terapêutica. 7ª Ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan 2006; p.198.

2 - Covino BF, Giddon DB. Pharmacology of the local anaesthetic agents. J Dent Res 1981;60(8):1454-9.

3 - Mariano RC, Santana SI, Coura GS. Análise comparativa do efeito anestésico da lidocaína a 2% e da prilocaína a 3%. BCI 2000;7(27):15-9.

4 - Toramano N, Soares MS, Migliorati CA. Anestésicos locais. In: Tortamano N. Terapêutica medicamentosa em odontologia. São Paulo: Moreira Jr. 1980; p.56-62.

5 - Jostak JT, Yagiela JA. Vasoconstrictors and local anesthesia: a review and rationale for use. J Am Dent Assoc 1983;107:623-9.

6 - Newcomb GM, Waite IM. The effectiveness of two local analgesic preparations in reducing hemorrhage during periodontal surgery. J Dent 1972;1:37-42.

7 - Alonso SR, Sanchez-Escribano CB, Chaparro Heredia AJ. Anestésicos locales: mecanismo de acción(II). Revista de AC Estomatologia Espanhola 1989;49(382):37-42.

8 - Klingestron P, Killey HC, Wright C. Acta Anest Scand 1964;8:261.

9 - Akerman B. Acta Pharmac Tox 1966;24:377.

10 - Malamed SJ. Manual de anestesia local. 4ª Ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2001. p.44-65.

11 - Meyer FU. Hemodynamics changes under emotional stress following a minor surgical procedure under local anaesthesia. Int J Oral Maxillofac Surg 1987;16:688-94.

12 - Cáceres MTF, Ludovice ACPP, de Brito FS, et al. Efeito de Anestésicos Locais com e sem Vasoconstrictor em Pacientes com Arritmias Ventriculares. Arq Bras Cardiol 2008;91(3):142-7.

13 - Vanderheyden PJ, Willians RA, Sims TN. Assesment of ST segment depression with cardiac disease after local anesthesia. J Am Dent Assoc 1989;119:407-12.

14 - Conrado VCLS, Andrade J, Angelis GAMC, et al. Efeitos cardiovasculares da Anestesia Local com Vasoconstritor durante Exodontia em Coronariopatas. Arq Bras Cardiol 2007;88(5):507-13.




I. Médico do Serviço de Estimulação Cardíaca Artificial da Universidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM).
II. Aluno(a) do Curso de Graduação em Medicina da UFTM.
III. Responsável pelo Serviço de Estimulação Cardíaca Artificial da UFTM.

Endereço para correspondência:
Dr. Celso Salgado de Melo. Rua da Constituição, 730
CEP: 38025-110. Uberaba - MG. Brasil
E-mail: celsosalgado@uol.com.br 

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