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08 fevereiro 2011

Suplementos fluorados pós-natais: recomendações de pediatras, entidades profissionais e instituições públicas de saúde

Revista Brasileira de Saúde Materno Infantil

Print version ISSN 1519-3829

Rev. Bras. Saude Mater. Infant. vol.9 no.3 Recife July./Sept. 2009

doi: 10.1590/S1519-38292009000300002

ARTIGOS ORIGINAIS ORIGINAL ARTICLES

Suplementos fluorados pós-natais: recomendações de pediatras, entidades profissionais e instituições públicas de saúde

Post-natal fluoride supplements: the recommendations of pediatricians, professional organizations and public health institutions

Denise Marrone Ribeiro; Paulo Capel Narvai

Faculdade de Saúde Pública. Universidade de São Paulo. Av. Dr. Arnaldo, 715. CEP: 01.246-904. São Paulo, SP, Brasil. E-mail: denise.marrone@terra.com.br


RESUMO

OBJETIVOS: identificar a opinião de pediatras e conhecer as recomendações de entidades profissionais e instituições públicas de saúde quanto à prescrição de suplementos fluorados.
MÉTODOS: um questionário foi enviado a médicos pediatras. Informações adicionais sobre recomendações de suplementos fluorados foram obtidas junto a sete entidades profissionais e quatro instituições públicas de saúde.
RESULTADOS: aproximadamente um em cada dez pediatras declarou prescrever algum suplemento contendo flúor. Risco de fluorose dentária, porque a água é fluoretada, foi a principal razão para afirmar que isso não deve ser feito. Quanto às entidades profissionais, duas deram respostas apropriadas. As respostas das demais não foram satisfatórias quanto ao uso racional de flúor. As respostas das instituições públicas foram apropriadas, embora o Ministério da Saúde não tenha se posicionado a respeito.
CONCLUSÕES: um em cada 10 pediatras declarou prescrever suplementos contendo flúor para crianças residentes em São Paulo, cidade com água fluoretada. Em consequência, é necessário que o poder público e as entidades odontológicas assumam suas responsabilidades quanto ao uso dos suplementos fluorados.

Palavras-chave: Flúor, Suplementos, Medicamentos, Prescrição


ABSTRACT

OBJECTIVES: to identify the opinion of pediatricians and the recommendations of professional organizations and public health institutions regarding the prescription of fluoride supplements.
METHODS: a questionnaire was sent to pediatric doctors. Additional information on fluoride supplements was obtained from seven professional organizations and four public health institutions.
RESULTS: approximately one in every ten pediatricians reported having prescribed some fluorine supplement. The risk of dental fluorosis, when water is fluoridated, was the main reason given for believing that this should not be done. With regard to professional organizations only two gave appropriate responses. The others did not have a satisfactory opinion regarding reasonable use of fluorine. The response of the public institutions was appropriate, even though the Ministry of Health has not stated a position on the issue.
CONCLUSIONS: one in every 10 pediatricians reported having prescribed supplements containing fluorine to children living in São Paulo, a city in which the water is already fluoridated. There is, therefore, a need for the public authorities and dental associations to take on their responsibilities with regard to the use of fluoride supplements.

Key words: Fluorine, Supplements, Medicaments, Prescription


Introdução

O uso de suplementos fluorados na forma de comprimidos, pastilhas ou líquidos (gotas e suspensões de vitaminas com flúor) para prevenir a cárie dentária foi recomendado, no passado, como método sistêmico alternativo, às gestantes e às crianças que não dispunham de água fluoretada.1 O objetivo do uso desses suplementos em tais contextos era compensar a deficiência de flúor na água de abastecimento e estava apoiado no conceito de que a forma mais eficiente de usar flúor era a sua ingestão durante a formação dos dentes, de maneira que sua incorporação ao esmalte dentário teria como consequência uma maior resistência à cárie dentária. Hoje, sabe-se que o principal mecanismo de ação do flúor deve-se à sua ação pós-eruptiva, interferindo nos ciclos de desmineralização e remineralização, reduzindo a primeira e ativando a segunda, sendo a presença contínua de flúor em baixas concentrações no meio bucal indispensável, e a interrupção do consumo de água fluoretada suficiente para cessar o efeito preventivo, se não houver outro aporte de flúor.2

Vários são os questionamentos que se interpõem quando se considera a utilização destes produtos na atualidade. Cury2 afirma que a necessidade de ingerir flúor na forma de suplementos tem sido questionada devido aos conceitos atuais de mecanismo de ação do flúor, que dão ênfase à sua ação local e, também, devido à exposição aos dentifrícios fluoretados.

No Brasil, a fluoretação da água de abastecimento público, adotada como espinha dorsal de um sistema de prevenção para cárie dentária, não impediu que os suplementos com flúor continuassem a ser comercializados livremente. Também não se dispõe, oficialmente, de um esquema de doses para a prescrição de suplementos fluorados e sabe-se que práticas médicas inadequadas quanto à prescrição de suplementos fluorados têm sido referidas.3,4

Segundo Cury2 verifica-se a necessidade de mudanças formais em relação aos suplementos pós-natais de flúor disponíveis no mercado, com revisão da posologia e das bulas dos produtos, que apresentam informações inadequadas. O autor menciona ainda, que médicos estariam desatualizados em relação à prescrição desses produtos.

Em vista das múltiplas alternativas de aquisição do flúor, a prática da suplementação é inadequada levando-se em consideração a relação risco/benefício e a exposição crescente da população à água e aos dentifrícios fluoretados.

O objetivo deste trabalho foi identificar a opinião de pediatras em relação à prescrição de suplementos fluorados, identificando suas justificativas para a decisão de prescrever e a sua percepção acerca da necessidade do flúor nos suplementos vitamínicos. Adicionalmente, buscou-se conhecer as recomendações de entidades profissionais médicas e odontológicas, e instituições públicas de saúde no âmbito municipal, estadual e federal em relação ao uso desses produtos por crianças.

Métodos

A população de estudo foi constituída por médicos pediatras associados à Sociedade de Pediatria de São Paulo (SPSP), em 2003. Essa entidade forneceu o seu cadastro, exclusivamente para os fins desta pesquisa, o qual se constituiu no sistema de referência para a identificação da amostra. Foram mantidos no sistema de referência apenas aqueles profissionais com atuação no Município de São Paulo, São Paulo, Brasil. A coleta de dados foi feita através de um questionário contendo questões abertas e fechadas. Esse questionário foi enviado pelo correio aos médicos sorteados, juntamente com o termo de consentimento e um informativo esclarecendo a natureza da pesquisa. Tendo em vista o tipo de estudo, de natureza qualitativa, em que se buscava identificar as opiniões desses especialistas sobre o assunto, e considerando-se as perdas devido aos não respondentes e uma porcentagem de retorno de 20%, estimou-se a necessidade de enviar 1230 questionários. A partir da listagem numerada da SPSP e de uma listagem de números aleatórios, obtida com auxílio do programa Epi-Info, procedeu-se à seleção dos nomes e endereços dos pediatras que receberiam a correspondência. Pré-teste foi realizado e observou-se que a porcentagem de retorno coincidiu com a porcentagem estimada, situando-se em 20%.

Os dados gerados a partir de questões abertas do questionário foram agregados dando origem às idéias centrais apresentadas nas Tabelas, da seção Resultados, a partir de elementos da metodologia identificada como Discurso do Sujeito Coletivo.5 As respostas às questões abertas foram agregadas ou não, na medida em que os enunciados "pensamentos" ou "conjunto de representações" pudessem ser descritos como discursos socialmente compartilhados.

Para identificar as recomendações de entidades de profissionais e de instituições públicas de saúde enviou-se, primeiramente, correspondência eletrônica (e-mail), após identificação de atores coletivos com responsabilidades na área. Informações foram obtidas junto a quatro instituições estatais de saúde e sete entidades de profissionais de saúde (duas médicas e cinco odontológicas). As tentativas de obtenção de resposta por via eletrônica foram repetidas seis vezes, no máximo. Quando a resposta por via eletrônica não foi obtida, o questionário foi remetido por via postal. As instituições públicas integrantes da amostra foram: 1) Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA); 2) Ministério da Saúde - Área Técnica de Saúde Bucal (MS/ATSB); 3) Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo - Divisão de Saúde, Centro Técnico de Saúde Bucal (SES-SP); e, 4) Secretaria Municipal da Saúde de São Paulo (SMS-SP). As entidades de profissionais de saúde foram: 5) Sociedade de Pediatria de São Paulo (SPSP); 6) Associação Paulista de Medicina (APM); 7) Associação Brasileira de Odontologia-Nacional (ABO-Nacional); 8) Conselho Federal de Odontologia (CFO); 9) Conselho Regional de Odontologia de São Paulo (CRO-SP); 10) Associação Paulista de Cirurgiões-Dentistas (APCD); e, 11) Associação Brasileira de Odontologia de Promoção da Saúde (ABOPREV).

A coleta de informação via e-mail foi conduzida através de questão objetiva, como descrita:

Modelo 1 - "Necessito conhecer as recomendações desta entidade em relação ao uso de suplementos dietéticos com flúor para crianças"; Modelo 2 - "Estou realizando uma pesquisa sobre o uso de medicamentos com flúor - comprimidos, gotas, vitaminas - por crianças. Esta Entidade foi incluída na amostra dessa investigação científica (projeto aprovado pelo Comitê de Ética em pesquisa da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo". "Assim, peço-lhe a gentileza de me responder se há alguma recomendação ou orientação técnico-científica, quanto ao uso desses medicamentos por esta Entidade. Mesmo que não exista, sua resposta é muito importante". O Modelo 1 foi usado na primeira tentativa. Quando não se obteve resposta, enviou-se, novamente via e-mail, o Modelo 2, utilizando-o nas próximas tentativas. Quando a informação não foi obtida após a sexta tentativa, tentou-se obtê-la através de correspondência postal com conteúdo semelhante ao dos e-mails. Após esta etapa inicial de busca, e uma vez obtidas as informações, procedeu-se, com todos os elementos da amostra, à checagem das informações obtidas, solicitando-se a confirmação da primeira informação fornecida, ou, se fosse o caso, que se procedesse às modificações necessárias.

Resultados

Dos 1230 questionários enviados pelo correio aos pediatras, 131 retornaram respondidos e 95 cartas foram devolvidas "ao remetente" (quase todas devido à mudança de endereço do destinatário). Assim, 1135 cartas atingiram o destinatário. A porcentagem de retorno foi de 11,5%, e se situa dentro dos padrões dessa estratégia de obtenção de dados. Dos 131 questionários, foram utilizados 125 (95,4%), uma vez que seis questionários apresentavam falhas de preenchimento, número este suficiente para a análise qualitativa.

Foram 12,8% (n=16) os pediatras que declararam prescrever para crianças algum suplemento contendo flúor. A frequência de médicos que declarou achar necessária a presença do flúor nos suplementos vitamínicos foi de 15,2% (n=19); não acham necessário 78,4% (n=98); 2,4% (n=3) não sabem ou não responderam; e 4,0% (n=5) criaram a alternativa "depende", justificando-a na pergunta seguinte. Tais números (frequências e porcentagens), no contexto de um estudo qualitativo, têm tão somente a finalidade de caracterizar a população de estudo, não se prestando, por certo, para inferências de qualquer tipo.

Nas Tabelas 1 e 2 são apresentadas as idéias centrais identificadas nas respostas dos médicos pediatras.

Quanto às recomendações de entidades profissionais e instituições públicas de saúde, as respostas obtidas foram as seguintes: 1) ANVISA: indicou que a quantidade de flúor para suplementos vitamínicos (alimentos) e para complexos vitamínicos (medicamentos) está baseada na legislação vigente segundo as Portarias 32, 33 e 40 de 1998;6-8 MS/ATSB: indicou um consultor técnico para assuntos relacionados à fluoretação. O referido consultor encaminhou cópias de publicações de sua autoria, contendo seu posicionamento quanto ao uso de produtos fluorados; 3) SES-SP: indicou o documento "Recomendações sobre o uso de produtos fluorados em função do risco de cárie no SUS/SP" (Resolução SS-95); 4) SMS/SP: pauta-se pela Resolução da SES-SP (RSS-95) para execução das ações preventivas de natureza coletiva e individual. Informou que o relatório anual do sistema de Vigilância Sanitária da fluoretação de águas de abastecimento público no Município de São Paulo recomenda e reforça o alerta aos profissionais de saúde quanto à não prescrição de medicamentos de uso sistêmico que contenha fluoreto de sódio em sua composição; 5) APM: não apresentou orientação específica; 6) SPSP: indicou um trabalho de revisão (Neto, 2001) em que se concluiu pela não necessidade do uso de flúor para crianças que habitam cidades cuja água é fluoretada; 7) CFO: não possuía os dados solicitados; 8) CRO-SP: não respondeu à pergunta formulada; 9) ABO-Nacional: não apresentou recomendações; 10) APCD: não recomendou suplementos dietéticos com flúor nos projetos desenvolvidos internamente; 11) ABOPREV: não respondeu.

Discussão

Em relação à prescrição de algum suplemento com flúor para crianças no município de São Paulo a tendência de "não prescrever" se mostrou consistente, dada a reiteração com que ocorreu nos discursos. Essa tendência se encontra respaldada em conhecimentos técnicos acerca do tema flúor, pela maioria dos pediatras. Acresce que a grande maioria desses profissionais declarou não prescrever suplementos vitamínicos com flúor "porque a água é fluoretada, e porque há risco de fluorose". Constata-se que predomina, entre esses especialistas, conhecimento técnico atualizado acerca do tema. Cabe enfatizar, porém, o alerta de Cury9 quanto à desatualização de médicos sobre a prescrição de suplementos com flúor: mesmo que a porcentagem se refira apenas ao encontrado na amostra, e portanto não represente o conjunto desses especialistas com atuação na cidade de São Paulo, cabe menção ao fato de que cerca de um quarto (24,8%) demonstram não saber a razão porque tal prescrição não deve ser feita onde a água é fluoretada.

A respeito dos conhecimentos sobre a prática pediátrica em relação à prescrição de suplementos fluorados e a outros aspectos relacionados à saúde bucal, constata-se que existem poucos trabalhos no Brasil.3,10-14 Nesses estudos, todos com delineamento quantitativo, questionários foram utilizados como instrumento para coleta de dados por via postal e apresentaram baixo retorno de respostas.

Na Tabela 1, relativa aos motivos para prescrever, ao declararem "não prescrever suplemento vitamínico com flúor porque a água é fluoretada", "Há risco de fluorose", "Só prescreve vitamina A e D", os pediatras demonstram amplo conhecimento da situação atual do município de São Paulo quanto à fluoretação de água de abastecimento público. Tal porcentagem vai ao encontro dos achados de Schalka11 de que 76% dos pediatras do Município de São Paulo não prescrevem flúor sistêmico e que 97% conhecem a condição de água fluoretada do município. Esse fato, por si, implica a suspensão do uso de qualquer outra fonte sistêmica adicional de flúor. Constata-se também a preocupação com o risco de fluorose dentária, caso suplementos com flúor sejam utilizados nesta circunstância.

O discurso "não prescreve suplemento vitamínico com flúor, só se a fonte de água não for a água de abastecimento público, mas sim proveniente de outra fonte, por exemplo, mineral (de galão) ou outra" revela que persiste o pensamento de que a água mineral, de galão ou de outra proveniência que não o abastecimento público, está isenta de flúor, o que não corresponde sempre à realidade, de acordo com Villena et al.15 Esses autores observaram que as águas minerais comercializadas no Brasil podem apresentar concentrações de flúor que variam de 0,0 à 4,4 ppm F-, que 18,3% das águas engarrafadas analisadas apresentaram mais de 0,3 ppm F- e 10,6% delas apresentaram mais de 0,7 ppm F-, indicando ser necessário, antes de optar pela suplementação, o conhecimento da concentração de flúor da água mineral que está sendo consumida.

As outras opiniões, segundo as quais "não prescreve suplemento vitamínico com flúor porque a especialidade não comporta prescrever ou porque não clinica" e "não prescreve suplemento vitamínico com flúor porque recomenda ao dentista" revelam que uma parcela de pediatras, ainda que muito reduzida, deveria estar mais bem informada acerca da ação preventiva do flúor em relação à cárie dentária e da inadequação de qualquer consumo adicional de flúor.

Quanto a não prescrever suplemento vitamínico com flúor "porque estes medicamentos interferem na energia vital da criança" não há registro na literatura que aborde a interferência do flúor no equilíbrio da energia vital da criança. E não prescrever o suplemento "porque percebeu a existência de fluorose nas crianças que recebiam os suplementos", ainda que possa ter sido observada, não deveria ter sido associada com o uso de suplementos com flúor, uma vez que tanto a água fluoretada quanto o creme dental fluoretado poderiam estar envolvidos em sua produção.

Quanto às respostas afirmativas ao ato de prescrever os suplementos vitamínicos com flúor, percebe-se que, ainda que se prescrevam, existe a preocupação com a presença do flúor na água de consumo, evidenciada pelo discurso "só prescreve quando a água não é fluoretada". Entretanto, esse discurso pareceu mais uma justificativa teórica do que uma consideração a respeito da prática médica exercida no Município de São Paulo, que possui água fluoretada desde 1985. Demonstra a preocupação de não prescrever quando a água é fluoretada, porém revela o desconhecimento de que, no local onde exerce sua atividade profissional, a água é fluoretada e, portanto, não caberia esse argumento. No Termo de Consentimento, bem como no Informativo da pesquisa, que o acompanhou, explicitou-se que se tratava da prescrição de suplementos de flúor no Município de São Paulo.

A afirmação de que prescreve suplementos com flúor "apesar da água fluoretada", pois "percebe melhor qualidade da dentição quando prescreve" é desprovida de qualquer embasamento técnico-científico, uma vez que a literatura é bastante clara quanto à não utilização de suplementos de flúor quando a água apresenta concentração maior ou igual a 0,6 ppm F- e sobre as implicações indesejáveis de fazê-lo.1,16,17 O discurso "em berçário são usados suplementos vitamínicos" não elucida quais tipos de suplementos são utilizados e nem para quais crianças eles são preconizados. Prescrever "para pacientes cronicamente debilitados" justifica a necessidade de suplementos ou medicamentos, mas não a necessidade de conterem flúor, uma vez que esses pacientes apesar de "cronicamente debilitados" também consomem água fluoretada.

Predominou o discurso de que:

[...] a água já está fluoretada, em níveis adequados, não sendo, portanto, necessária a suplementação. Na ausência de água fluoretada esta pode ser utilizada. Além disso, outros produtos (creme dental, flúor tópico, alimentos, refrigerantes) e ações preventivas já contêm flúor. O uso de suplementos com flúor na presença de água fluoretada aumenta o risco para desenvolver fluorose dentária. As vitaminas A e D são frequentemente prescritas no primeiro ano de vida.

Esse discurso contém justificativas pertinentes, e muito bem fundamentadas, para a não utilização dos suplementos, demonstrando que a maioria dos médicos respondentes demonstrou pleno conhecimento dos agravantes da prescrição desnecessária desses suplementos. Os discursos "se necessário, usar o flúor separadamente" e "em geral não é necessário suplementar, avaliar a necessidade" complementam este raciocínio.

Embora amplamente minoritário, é relevante que tenha emergido, no contexto, a preocupação com a automedicação: "existe o risco de automedicação com polivitamínicos com flúor". Lefèvre18 alerta para o valor simbólico dos medicamentos: ao consumir um medicamento se busca, simbolicamente, comprar saúde, uma vez que os medicamentos, "ao incorporar em si a saúde, passam a representá-la, a simbolizá-la". Cury9 afirma que, muitas vezes, a presença do flúor surge como um agente que dá qualidade adicional para o consumo de um produto, configurando a aquisição destes medicamentos como propiciadores de saúde. Ao mencionarem que "encaminham ao dentista para aplicação tópica de flúor" ou que "desconhecem a importância do flúor", alguns pediatras demonstram que não estão esclarecidos sobre o uso infantil de suplementos contendo flúor.

Aqueles que responderam positivamente em relação à necessidade do flúor estar presente nos suplementos vitamínicos justificaram esta conduta com três tipos de discurso:

O flúor tem uma ação profilática na prevenção de cárie, sendo necessário para haver saúde dentária.

O flúor deve ser complementado quando não houver água fluoretada ou esta não estiver adequadamente fluoretada.

O flúor deve ser complementado devido a dietas inadequadas e ao pequeno acesso a cuidados odontológicos.

O primeiro discurso parece apenas uma justificativa formal, um discurso pouco reflexivo que demonstra desconsideração ou desconhecimento acerca da realidade da fluoretação da água de abastecimento no município. O segundo discurso, ao contrário, mostra a preocupação com este fato e condiciona a ele a necessidade ou não dos suplementos terem o flúor na sua composição. O terceiro discurso revela também desconsideração ou desconhecimento acerca da realidade do município quanto à fluoretação de água de abastecimento e que tal fato por si só não justifica nenhuma forma de complementação, ainda que as "dietas inadequadas e o pequeno acesso a cuidados odontológicos" sejam constatados.

De modo geral, são adequadas as justificativas apresentadas pela maioria dos pediatras para o ato de prescrever e quanto à necessidade do flúor nos suplementos, indicando o conhecimento da ação preventiva do flúor, da situação do município quanto à presença do flúor na água de abastecimento público, e das implicações desse fato.

Quanto às recomendações de entidades profissionais e instituições públicas de saúde, constatou-se que não se dispõe de um esquema de dosagem específico para o Brasil. Alternativamente, poder-se-ia adotar as dosagens propostas pela Associação Odontológica dos Estados Unidos da América (ADA) e a Associação de Odontopediatras daquele país (AAPD), que recomendam a utilização de suplementos de flúor depois dos seis meses de idade, e na dose de 0,25 mg F/dia a partir de seis meses até três anos para crianças que moram em cidades com concentração de flúor na água inferiores a 0,3 ppm F. Resulta importante considerar que, para fluorose dentária, o período de suscetibilidade denominado crítico para alterações estéticas que afetam os dentes permanentes anteriores superiores está situado entre 22 e 26 meses de vida19 ou dos 20 aos 30 meses de vida,20 ou dos 20 aos 36 meses,9 sendo prudente, portanto, evitar correr riscos neste período - que corresponde ao segundo e terceiro ano de vida da criança. Outro aspecto relevante, ainda que encerre uma discussão conceitual, diz respeito ao mecanismo de ação do flúor, que através de comprimidos e pastilhas pode apresentar além da ação preventiva, uma ação terapêutica, na medida em que interage localmente no processo físico-químico de desmineralização-remineralização que se dá nas lesões de mancha branca.21

Segundo o disposto na Portaria 32:

[...] aos suplementos vitamínicos e/ou minerais não podem ser apregoadas indicações terapêuticas. (ANVISA. 1998: 12).6

Contudo, há que se admitir que, teoricamente, há ação terapêutica quando suplementos contendo flúor são prescritos para portadores de cárie em que as lesões estejam em fase de mancha branca.

As instituições de saúde nos níveis estadual e municipal indicaram o documento "Recomendações sobre uso de Produtos Fluorados no âmbito do Sistema Único de Saúde de São Paulo em função do Risco de Cárie Dentária"22 e assinalaram a necessidade da regulamentação de produtos com flúor, alertando aos profissionais de saúde quanto à não prescrição de medicamentos que o contenham. Em relação às entidades médicas e odontológicas e instituições públicas de saúde observou-se: das entidades médicas (APM e SPSP), obteve-se, sem dificuldade, ambas as respostas. A APM não possui orientação específica e a SPSP remeteu ao posicionamento do Departamento de Nutrição da Sociedade Brasileira de Pediatria, demonstrando uma articulação entre essas entidades e o envolvimento com a questão da suplementação de produtos fluorados. Em relação às entidades odontológicas (CFO, CRO-SP, ABO-Nacional, APCD e ABOPREV), exceção feita à APCD, não se observou o esperado envolvimento com a questão, cuja natureza, admite-se, é eminentemente odontológica. Constatou-se desde a ausência de resposta, a respostas insatisfatórias devido à ausência de dados ou ausência de recomendações. Resta o questionamento: se a categoria profissional odontológica não apresenta um posicionamento claro para questões tão essenciais como uso racional do flúor, de modo a permitir resposta imediata quando solicitada, o que esperar de outras entidades ou categorias profissionais de saúde? Como se poderia, então, exercer legítima pressão sobre os formuladores de políticas públicas de modo a que aperfeiçoem seus posicionamentos? O material analisado e o processo de pesquisa do qual decorre este artigo evidenciam uma dimensão de descompromisso e mesmo um relativo desinteresse das entidades odontológicas quanto ao problema abordado neste trabalho.

Considerações finais

As normas que tratam dos produtos contendo flúor deveriam ser revistas em função dos critérios de segurança para fluorose dentária e, também, em decorrência da exposição dos indivíduos, em muitos municípios, a outras fontes de flúor, principalmente a água de abastecimento e os dentifrícios.

Observa-se que, no Brasil, medidas relacionadas ao uso seguro de produtos fluorados não vêm sendo adotadas na extensão devida. Os suplementos fluorados encaixam-se perfeitamente nessa situação, conforme se constatou no município de São Paulo. A comercialização livre e sem restrição desses produtos demonstra uma ausência do poder público em participar mais ativamente da regulação do seu uso, omitindo-se frente ao problema e permanecendo alheio ao seu papel de proteção e promoção da saúde da população.

A existência desses produtos sem que haja uma orientação ou recomendação de posologias adequadas à realidade do país é, por si só, um contrassenso e evidencia uma política equivocada e um descaso. Neste estudo constatou-se que na esfera do poder público federal não há uma política ou qualquer orientação que norteie ou restrinja o uso de suplementos de flúor no Brasil. É como se eles tivessem sido esquecidos ou simplesmente não existissem. Surpreendeu constatar que o Ministério da Saúde não tinha, à época da pesquisa, um posicionamento claro a este respeito, delegando sua função a terceiros, ainda que formalmente investidos da função de consultores. Não há notícia de que esse quadro se tenha alterado significativamente nos últimos anos.

A fluoretação da água, o amplo uso de creme dental fluoretado, a dificuldade em se delimitar áreas fluoretadas e não fluoretadas devido ao efeito "halo", a tendência de crescimento do padrão de fluorose iatrogênica endêmica, por si só justificariam um posicionamento claro em relação ao impedimento de uso desses produtos. Observa-se que, nas esferas estadual e municipal em São Paulo, existem a preocupação, o conhecimento e um posicionamento claro quanto à não utilização desses produtos simultaneamente com a água e dentifrícios fluoretados. No entanto, isto não tem sido suficiente para impedir que suplementos fluoretados estejam disponíveis no mercado e, portanto, sejam livremente comercializados.

Pesquisadores nacionais têm alertado para a inadequação desses produtos, seja na bula, seja na sua formulação e, também, para a dificuldade de uso devido à ausência de um esquema de dosagem para uso no país.

Resta evidente a necessidade de o poder público assumir suas responsabilidades quanto ao uso desses produtos em nossa realidade, formulando políticas adequadas e diretrizes claras, respaldadas no conhecimento disponível, prevenindo o agravamento de problemas e agindo para proteger e assegurar o bem-estar da população.

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Recebido em 2 de dezembro de 2008
Versão final apresentada em 30 de abril de 2009
Aprovado em 20 de julho de 2009


Acesso original

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