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13 dezembro 2010

Movimentação ortodôntica em dentes com comprometimento periodontal: relato de um caso clínico

Revista Dental Press de Ortodontia e Ortopedia Facial
Print version ISSN 1415-5419
Rev. Dent. Press Ortodon. Ortop. Facial vol.10 no.2 Maringá March/Apr. 2005
doi: 10.1590/S1415-54192005000200014

ARTIGO INÉDITO



Movimentação ortodôntica em dentes com comprometimento periodontal: relato de um caso clínico



Orthodontic movement in teeth with periodontal disease: a clinical case report





Anderson CalheirosI; Álvaro FernandesII; Cátia Abdo QuintãoIII; Emanoela Volles SouzaIV

IEspecialista e Mestrando em Ortodontia pela UERJ
IIMestre em Ortodontia pela UFRJ. Professor Assistente da Disciplina de Ortodontia da Faculdade de Odontologia da UERJ
IIIMestre e Doutora em Ortodontia pela UFRJ. Professora Adjunta da Disciplina de Ortodontia da Faculdade de Odontologia da UERJ
IVEspecialista em Ortodontia pela UERJ

Endereço para correspondência





RESUMO

Geralmente o tratamento ortodôntico de pacientes adultos apresenta várias limitações, dentre as mais freqüentes podemos citar a perda exagerada do suporte ósseo, e a dificuldade de se obter uma ancoragem satisfatória devido às perdas de vários elementos dentários. No presente artigo, baseado na experiência clínica e na literatura consultada, procurou-se mostrar que é possível tratar de maneira eficiente esses casos, com uma abordagem multidisciplinar e adequação da mecânica ortodôntica à necessidade de cada indivíduo em particular. No caso clínico exposto, a paciente V.M., adulta, necessitava de tratamento odontológico envolvendo várias especialidades, incluindo a Ortodontia, que tinha como objetivo principal a intrusão e retração dos elementos 21 e 22. Após adequação do meio bucal, com a execução das extrações e restaurações necessárias, controle da doença periodontal e instituição de ótima higiene oral, foi iniciado o tratamento ortodôntico. Um sistema de ancoragem diferenciado foi aplicado, tentando superar a deficiência no número de unidades dentárias de suporte. Além disso, através da incorporação de "T-loops" aos arcos utilizados, procurou-se alcançar um bom controle na aplicação das forças necessárias à movimentação, evitando assim danos adicionais ao periodonto. Com esses cuidados, foi possível a obtenção de uma movimentação ortodôntica eficiente, com um real ganho funcional e estético para a paciente.

Palavras-chave: Ortodontia em adultos. Doença periodontal. Ancoragem.

ABSTRACT

Usually the orthodontic treatment of adults is quite limited, either in view of an exaggerated reduction in bone support, or due to the lack of anchoring points, when several dental elements having been lost. It is believed that these cases can be treated in an effective orthodontic way with a multidiscipline approach, tailored to each particular individual's mechanical needs. In this clinical case V.M, the patient, an adult, needed dental treatment involving several specialties including orthodontics, aimed mainly at the intrusion and retraction of elements 21 and 22. After bringing the buccal means to an adequate status by carrying out the required extractions and restorations, bringing the periodontal disease under control and instituting satisfactory dental hygiene, the orthodontic treatment was begun. A differentiated anchoring system was applied, in an effort to overcome the lack of supporting dental units. T-loops were incorporated to the arcs in use, in order to acquire control over all forces required for movement, thereby avoiding additional damage to the supporting structure. These precautions made it possible to obtain an efficient orthodontic movement with a real functional and aesthetic gain for the patient.

Key words: Orthodontics in adults. Periodontal disease. Anchoring.





INTRODUÇÃO

O número de pacientes adultos que procuram o tratamento ortodôntico tem aumentado sensivelmente nos últimos anos. Muitas vezes esses casos requerem um plano de tratamento e mecânicas mais complexas. Dentre as suas limitações mais freqüentes pode-se citar as doenças periodontais, com perda de inserção e a ausência de elementos dentários. Tais problemas podem afetar a migração fisiológica dos dentes, resultando em más oclusões com inclinações axiais de difícil correção. Normalmente, esses casos apresentam as seguintes características: diastemas medianos ou espaços generalizados, principalmente no segmento anterior; inclinação vestibular exagerada e extrusão dos incisivos superiores; rotação e inclinação de pré-molares e molares com colapso da oclusão posterior reduzindo a dimensão vertical12. Esse quadro pode ainda ser agravado por algum tipo de trauma oclusal e hábitos, como a interposição lingual2.

Geralmente o tratamento ortodôntico desses pacientes é bastante limitado, seja por diminuição exagerada do suporte ósseo, ou pela falta de ancoragem devido às perdas de vários elementos. Deve-se considerar no tratamento uma abordagem multidisciplinar, com elaboração de um plano de tratamento bastante diferenciado, adequando a mecânica à necessidade de cada indivíduo em particular.



RELATO DO CASO CLÍNICO

A paciente V. M., de 46 anos, compareceu à Faculdade de Odontologia da UERJ, com o objetivo de repor elementos dentários perdidos. Inicialmente foi encaminhada à Disciplina de Periodontia, onde através de exame clínico e radiográfico (Fig. 1), constatou-se que a mesma não necessitava apenas de tratamento periodontal e protético, mas sim, de uma abordagem multidisciplinar muito mais ampla, já que apresentava problemas que envolviam diferentes especialidades. O quadro 1 mostra de forma resumida o plano de tratamento que foi elaborado visando atender as necessidades do caso.

Inicialmente foram realizadas as extrações, a terapia periodontal, os retratamentos endodônticos e as restaurações. Antes do início da reabilitação protética e já com a doença periodontal controlada, foi solicitada à Disciplina de Ortodontia uma avaliação do caso. Constatou-se que a paciente apresentava uma face equilibrada, perfil convexo e um bom selamento labial (Fig. 2). No exame intrabucal, porém, constatou-se a necessidade de intrusão dos elementos 21 e 22, pois os mesmos, devido a problemas periodontais prévios, encontravam-se bastante extruídos e projetados, originando dessa forma um diastema entre os incisivos centrais e um desnivelamento anterior, que comprometia a função e a estética. (Fig. 3).





Como a ancoragem nesse caso era bastante crítica, devido às várias perdas dentárias e ao comprometimento periodontal, foi necessário desenhar um sistema de apoio diferenciado que permitisse a intrusão necessária dos elementos 21 e 22 sem, contudo, causar movimentos dentários indesejados dos outros elementos. Dessa forma, foi planejada uma barra transpalatina, com fio de aço 0,9mm, unindo o elemento 17 ao 26. Os elementos 23, 11, 12 e 13 foram unidos por uma barra 3-3 confeccionada com fio de aço 0,7mm colada nos dentes 11, 12 e 13 e soldada a uma coroa me-talo-cerâmica que já existia no elemento 23 (Fig. 4). Uma vez obtidos esses dois blocos de ancoragem, iniciou-se a movimentação ortodôntica.





Os incisivos superiores da paciente apresentavam-se com uma disposição tal, que o nivelamento anterior não poderia ser feito de forma convencional, pois poderia causar a extrusão dos incisivos do hemiarco direito. Por isso, foi confeccionado um arco de aço com fio 0,017" x 0,025", que continha dois T-loops, sendo um localizado na mesial do 21 e outro na distal do 22 (Fig. 5). Assim, procurou-se obter um grau de resiliência e flexibilidade do arco compatíveis com uma movimentação ortodôntica mais "fisiológica" e sem a criação de grandes áreas hialinizadas, prevenindo danos adicionais às estruturas de suporte.

As ativações do arco foram realizadas nos T-loops, com intervalo de 30 dias entre elas e a força aplicada em cada ativação foi bastante leve, variando entre 10 e 15g por elemento. Ao mesmo tempo em que foi feita a intrusão, incorporou-se torque vestibular de raiz aos dentes 21 e 22 para que fosse obtido um bom controle da inclinação no sentido vestíbulo-palatino desses elementos, durante a movimentação. Após cinco ativações, a correção da extrusão foi alcançada. Foram incorporados in sets e artistics bends para melhorar a estética do caso.

Não se observou nenhuma mobilidade anormal dos incisivos central e lateral intruídos.Ambos apresentavam-se com vitalidade e sem reabsorção radicular,ao final do movimento.Radiograficamente, pôde-se observar que não houve ganho ósseo significativo já que permaneceu o defeito angular na mesial do 21. Porém, a intrusão fica evidente quando comparadas as radiografias iniciais com as do final da movimentação (Fig. 6). A melhora estética e funcional com o tratamento ortodôntico realizado também é indiscutível (Fig. 7).



DISCUSSÃO

Limitações

Problemas periodontais

Considerando-se os problemas periodontais, os conceitos mais atuais afirmam que a correlação entre a profundidade da sondagem e a presença ou ausência de doença ativa não é tão expressiva quanto se acreditava até algum tempo atrás. Por isto, atualmente, a eliminação da bolsa já não é um objetivo primordial da terapia periodontal10,11. Hoje, o sucesso do tratamento periodontal centraliza-se na conversão do local com periodontite ativa para o estado inativo. Sendo assim, considera-se apto ao tratamento ortodôntico aquele paciente cujos problemas periodontais encontram-se controlados, sem sangramento gengival a sondagem e com boa higiene bucal, mesmo que o periodonto encontre-se reduzido, sem que isso signifique mais deteorização do tecido de sustentação1,3,4.

Inicialmente, a paciente V. M. apresentava perda de inserção generalizada, bolsas ativas e defeito ósseo vertical na mesial do elemento 21 e 25. Contudo, de acordo com os novos conceitos da Periodontia, tornou-se apta a submeter-se ao tratamento ortodôntico uma vez que devido à terapia periodontal prévia, as bolsas presentes tornaramse inativas, a gengiva passou a apresentar aspecto saudável e sem sangramento à sondagem. Além disso, ela havia desenvolvido uma ótima higiene bucal, o que possibilitou que a movimentação ortodôntica fosse executada sem danos adicionais à estrutura de suporte.

A migração de incisivos, secundariamente à doença periodontal progressiva, freqüentemente resulta em espaçamentos, protrusão e extrusão daqueles dentes. Uma vez que o tratamento periodontal provavelmente contribua mais para o alongamento da coroa, é desejável que o planejamento ortodôntico inclua intrusão e retração dos incisivos com o objetivo de minimizar o problema7.

Até pouco tempo atrás, a intrusão de dentes que apresentavam grande perda de inserção era um assunto que causava certa divergência entre os pesquisadores. Investigações mais atuais afirmam que o movimento de intrusão, quando realizado nesses casos, tendem a proporcionar ganho de inserção e conseqüente melhora do problema, desde que a doença periodontal esteja ausente no momento da movimentação e o controle de placa bacteriana seja eficiente5,7. Ericsson et al.6 mostraram que a intrusão de dentes contaminados por placa leva à formação de defeitos ósseos adicionais. Além da ausência de placa bacteriana, para que esse tipo de movimento tenha sucesso, é necessário que seja aplicada uma força bastante leve (5-10g) e que passe o mais próximo possível do centro de resistência dos dentes a serem movimentados, dessa forma, evitando-se ao máximo o movimento de inclinação8.

O plano de tratamento elaborado para o caso apresentado está de acordo com exposto acima. Para o controle da inclinação incorporou-se torque vestibular de raiz ao elementos 21 e 22, evitando assim que esses dentes sofressem movimentos indesejados no sentido vestíbulo-lingual, com conseqüente perda de osso marginal. Foi constatado radiograficamente que, apesar do defeito ósseo vertical do 21 não ter sido eliminado, houve uma real intrusão dos elementos 21 e 22, com ganho de inserção, e uma melhora substancial na função e estética da paciente, devida à combinação de movimento de intrusão e retração executado dentro dos critérios descritos na literatura.

Ancoragem

Outro problema bastante comum em pacientes adultos é a perda de vários elementos dentários, o que pode significar sérias limitações ao tratamento ortodôntico. Em muitos desses pacientes, para se viabilizar a correção da má oclusão, é necessário a utilização de implantes como ancoragem13.

Porém, não existem métodos padronizados a seres seguidos no tratamento de indivíduos adultos. Os princípios biomecânicos usados na Ortodontia devem ser adaptados à anatomia particular das áreas onde o movimento dentário está sendo planejado. Dessa forma em alguns casos, mesmo com perdas dentárias generalizadas, é possível executar um tratamento ortodôntico adequado, sem o auxílio de implantes, simplesmente com a aplicação de mecânica ortodôntica diferenciada, superando assim o problema da falta de ancoragem.

Segundo Bierte Melsen7, em casos em que a ancoragem é limitada, o primeiro passo a ser dado é estabelecer uma sólida e estável unidade de ancoragem. O aparelho pode ser montado de diferentes maneiras, dependendo da oclusão existente e do número de dentes presentes. Segundo a autora, barras transpalatinas rígidas soldadas às bandas e unindo os elementos remenescentes; "splints" oclusais unidos por fios rígidos e arcos pesados preenchendo os "slots" são exemplos de alternativas para se formar um bloco que possa servir como ancoragem. No caso da paciente em questão, foi planejado a formação de dois blocos de ancoragem. O primeiro formado pelos molares remanescentes que foram unidos por uma barra transpalatina rígida, de forma a dificultar a inclinação indesejada desses dentes. O segundo bloco foi formado pelos elementos 23, 11, 12 e 13, que foram unidos por uma barra palatina. Como se pode constatar ao final da intrusão, os blocos de ancoragem funcionaram de maneira bastante eficiente, proporcionando apoio suficiente para que fosse feito a movimentação ortodôntica desejada, sem que contudo, tenha existido movimentos indesejados dos elementos dentários de suporte.

Fatores biológicos e biomecânicos

O tratamento ortodôntico em adultos apresenta limitações que podem ser divididas didaticamente em: limitações intrínsecas (de natureza biológica) e limitações extrínsecas (dificuldades biomecânicas)7.

A limitação intrínseca mais marcante é o fato de não existir mais crescimento no adulto. Dessa forma, grandes discrepâncias esqueléticas só podem ser corrigidas com cirurgia ortognática. O tratamento ortodôntico, nesses casos, fica restrito ao movimento dentário com conseqüente remodelação do processo alveolar. Esse tipo de movimentação não apresenta maiores problemas quando executado em pacientes adultos com periodonto sadio, uma vez que as reações tissulares requeridas na movimentação ortodôntica não dependem da idade7. Isto foi verificado no caso exposto, onde mesmo sendo a paciente adulta, a movimentação ortodôntica foi perfeitamente possível, sem que danos tenham sido causados aos tecidos de suporte.

Geralmente as maiores limitações encontradas no tratamento de pacientes adultos são de natureza extrínseca. Isso se deve à dificuldade de se ajustar o sistema de força à produção de estímulo de intensidade adequada. Nesses casos, deve-se levar em consideração todas as diferenças biológicas existentes nos adultos e procurar aplicar forças mais suaves, principalmente no início do tratamento, do que aquelas utilizadas no paciente em crescimento7.

Esse controle da intensidade da força é imprescindível, uma vez que para se obter um determinado tipo de movimento dentário sem que haja perda de osso marginal adicional, deve-se evitar ao máximo a inclinação dentária e manter o equilíbrio entre reabsorção e deposição. Isso só pode ser alcançado se o movimento ocorrer em reabsorção óssea direta, sem a criação de áreas hialinizadas, o que, por sua vez, é obtido pela aplicação de força leve e intermitente9.

No estágio inicial do tratamento ortodôntico em adultos, é recomendada uma força intermitente de 20-30g. Posteriormente, a força pode ser aumentada para 30-50g (movimento de inclinação) e 50-80g (movimento de corpo) dependendo do grau de perda óssea marginal e da qualidade de osso alveolar remanescente12. Segundo Birte Melsen et al.8, a força ideal para a intrusão em dentes comprometidos periodontalmente é entre 5 a 10g por elemento. No caso exposto procurou-se aplicar forças bastante leves (10 -15g) durante todo o tratamento, para se evitar mais perda óssea ou dano às raízes, já que além de movimento de corpo, também foi executado movimento de intrusão. Esse controle da força foi obtido utilizando-se um fio de aço 0,017"x0,025" com incorporação de "T-loops" na mesial e distal do bloco a ser movimentado. Dessa forma o arco tornou-se bastante flexível, permitindo a liberação de uma força suave e gradual.



CONCLUSÃO

Embasado cientificamente pela literatura e com a observação clínica, acredita-se que é possível tratar ortodonticamente e de maneira eficiente, casos em que limitações, tais como os problemas periodontais generalizados e as perdas de vários elementos dentários, estão presentes. Contudo, o plano de tratamento deve ser multidisciplinar, atendendo as particularidades de cada caso. Por isso, previamente ao tratamento ortodôntico, é imprescindível que a adequação do meio bucal tenha sido obtida, com todas as restaurações e extrações necessárias executadas e principalmente com a periodontite totalmente controlada. Considerando-se o aspecto mecânico do tratamento, deve-se criar um eficiente sistema de ancoragem, e cuidar para que as forças aplicadas sejam suaves e intermitentes permitindo dessa forma um bom controle do movimento. Com esses cuidados, espera-se obter uma efetiva movimentação dentária, sem que, contudo, sejam causados danos adicionais ao tecidos de suporte e as raízes dos elementos envolvidos.



REFERÊNCIAS

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Endereço para correspondência
Anderson Calheiros
Rua Benjamim Batista, 180/202 Jardim Botânico
CEP: 22461-120 - Rio de Janeiro - RJ
E-mail: andorto@uol.com.br

Enviado em: Outubro de 2003
Revisado e aceito: Setembro de 2004

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Vacinação contra a hepatite B entre cirurgiões dentistas

Revista de Saúde Pública

Print version ISSN 0034-8910

Rev. Saúde Pública vol.37 no.3 São Paulo June 2003

doi: 10.1590/S0034-89102003000300011

ARTIGO ORIGINAL

Vacinação contra a hepatite B entre cirurgiões dentistas

Hepatitis B vaccination among dentists

Andréa Maria Eleutério de Barros Lima MartinsI; Sandhi Maria BarretoII

IDepartamento de Odontologia da Universidade Estadual de Montes Claros. Montes Claros, MG, Brasil
II
Departamento de Medicina Preventiva e Social da Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, MG, Brasil

Endereço para correspondência


RESUMO

OBJETIVO: Inquéritos sorológicos realizados em diversos países mostraram uma maior prevalência da infecção pelo vírus da hepatite B (VHB) em dentistas, especialmente entre os cirurgiões, do que na população geral. O estudo realizado objetivou determinar a prevalência e os fatores associados à vacinação contra hepatite B (HB) entre os dentistas e investigar as principais razões alegadas para a não vacinação e vacinação incompleta.
MÉTODOS: Foi conduzido um inquérito entre 299 cirurgiões dentistas residentes em Montes Claros, MG, por meio de questionário auto-aplicável. Foi determinada a prevalência de vacinação segundo o número de doses e os fatores associados à não vacinação e à vacinação incompleta através de regressão logística multinomial.
RESULTADOS: Dos 299 questionários distribuídos, 296 (99%) foram respondidos. Destes, 74,9% tomaram três doses; 14%, duas doses; 2%, uma dose e 10% não foram vacinados. A vacinação completa foi maior entre os que relataram fazer exclusivamente cirurgia e/ou periodontia (89%). A principal razão alegada para a não vacinação ou vacinação incompleta foi a necessitade de maiores informações. A não vacinação foi mais freqüente entre aqueles com mais de 40 anos (OR=8,62; IC 95%: 1,88-39,41) e os que não se reciclaram nos dois anos prévios ao inquérito (OR=2,72; IC 95%: 1,02-7,22). A vacinação incompleta foi maior entre os que não usam luva no trabalho (OR=2,32; IC 95%: 1,08-4,97).
CONCLUSÃO: A falta de informação, possivelmente relacionada a menor reciclagem profissional, parece ser um dos principais fatores limitantes da vacinação.

Descritores: Hepatite B, prevenção & controle. Vacinas contra hepatite B. Odontólogos. Prevalência.


ABSTRACT

OBJECTIVE: Serological studies in several countries have found a higher prevalence of hepatitis B virus (HBV) among dentists when compared to the general population, especially among surgical specialties. The present study was carried out to determine the prevalence of hepatitis B (HB) vaccination and factors associated with no vaccination and incomplete vaccination among dentists.
METHODS: A survey was conducted among 299 dentists living in Montes Claros, southeast Brazil, using a self-administered questionnaire. HBV vaccination prevalence was determined according to the number of doses of vaccine and factors associated with no vaccination or incomplete HBV vaccination were investigated using multinomial logistic regression analysis.
RESULTS: Participation rate in the study was very high (296/299). Of the participants, 74.9% received three doses of HBV vaccine, 14% two doses, 2% a single dosis and 10% were not vaccinated. Complete vaccination rate was higher among surgeons and periodontists (89%). The main reason reported for not being vaccinated or incomplete vaccination was the need of more information. No vaccination was significantly higher among dentists aged 40 years and over (OR=8.62; 95%CI: 1.88-39.41) and those who did not attend refreshment courses in the last two years prior to the survey (OR=2.72; 95%CI: 1.02-7.22). Incomplete vaccination was positively associated with non-use of gloves during work (OR=2.32; 95%CI: 1.08-4.97).
CONCLUSIONS: Lack of information, possibly associated to lower attendance to refreshment courses, seems to be one of the main factors affecting the vaccination rate.

Keywords: Hepatitis B, prevention & control. Hepatitis B vaccines. Dentists. Prevalence


INTRODUÇÃO

Eliminar as infecções nos consultórios odontológicos tem sido um grande desafio para cirurgiões dentistas, profissionais de saúde de uma maneira geral, pesquisadores e imunologistas. Os germes têm driblado as medidas de segurança, colocando em risco os profissionais e pacientes. A não utilização ou a utilização inadequada do equipamento de proteção individual no trabalho odontológico, assim como a manipulação incorreta de objetos contaminados está associada à transmissão de várias doenças infecciosas, entre elas a hepatite B (HB) e a síndrome da imunodeficiência humana (Aids).12 Essas doenças constituem grande preocupação de cirurgiões dentistas e dos pacientes pelos altos índices de letalidade e a crescente prevalência da HB.

O vírus da hepatite B (VHB) é dotado de infectividade 57 vezes maior que o vírus da imunodeficiência humana (HIV).12 A estabilidade do vírus no meio ambiente e a possibilidade de que quantidades minúsculas de sangue ou secreções contendo esse agente sejam capazes de transmitir a infecção justificam as hipóteses, fundamentadas em evidências clínicas, de que o VHB pode ser transmitido por inalação de gotículas, aerossóis contaminados ou pelo transporte manual para a boca de partículas contaminadas presentes na superfície de balcões.16

Inquéritos sorológicos realizados em diversos países demonstram quase que invariavelmente, uma maior prevalência da infecção pelo VHB em dentistas do que na população geral, especialmente entre as especialidades cirúrgicas.12

No Brasil, em Belo Horizonte, a prevalência da infecção foi significativamente maior (p<0,005)>14

As barreiras de proteção contra o VHB no consultório odontológico incluem as medidas de precauções universais, o uso de equipamentos de proteção individual por profissionais e auxiliares e um programa de imunização ativa, de preferência antes do início da atividade clínica. A grande evasão da campanha nacional de vacinação realizada em Goiás em 1995 sugere a necessidade de maior conscientização sobre a importância da imunização entre esses profissionais.15 Atualmente, a vacinação para os profissionais de saúde no Brasil é realizada gratuitamente nos postos de saúde. Para assegurar a imunidade é indispensável que sejam aplicadas as três doses preconizadas.12

Apesar da importância da vacinação contra a HB, poucos estudos determinaram sua prevalência entre dentistas no Brasil.1,2,7,11

O presente trabalho tem como objetivo determinar a prevalência de vacinação contra a HB e os fatores associados à vacinação incompleta e não vacinação entre cirurgiões dentistas, assim como conhecer as principais razões alegadas para vacinação incompleta ou não vacinação.

MÉTODOS

A população de estudo incluiu todos os cirurgiões dentistas inscritos no Conselho Regional de Odontologia de Minas Gerais (CRO/MG), seção de Montes Claros, MG, que residiam e exerciam a clínica no município. O total de dentistas identificados foi de 383, dos quais 299 exerciam a clínica nesse município.

Foram coletados dados por meio de questionário semi-estruturado, auto-aplicável, com os 299 dentistas, referentes a aspectos sociodemográficos e relacionados às características individuais, condições de trabalho, uso de equipamentos de proteção individual, características dos pacientes atendidos, ocorrência de acidentes com instrumento pérfuro-cortante nos últimos seis meses e na vida profissional e vacinação contra a HB. O questionário, instrumento para as entrevistas, não incluiu informações que permitissem a identificação do participante. A adequação das questões do questionário quanto ao conteúdo, tamanho e forma foi verificada por pré-teste realizado com profissionais da área.

A coleta de dados foi precedida da divulgação e sensibilização para participação no estudo. As estratégias adotadas foram cartas, telefonemas e visitas. Os questionários foram distribuídos e recolhidos em envelopes fechados e em branco para preservar a identidade do participante. A participação no estudo foi voluntária e os questionários foram respondidos no local de trabalho. O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética do Hospital das Clínicas da UFMG. O trabalho de campo contou ainda com a colaboração decisiva de entidades profissionais de odontologia e dos serviços públicos de saúde do município.

Os questionários respondidos, num total de 296, foram codificados e digitados usando-se o programa Epi-Info. Foram determinadas, nesta ordem: a prevalência da vacinação contra HB; os fatores associados à vacinação incompleta e a não vacinação contra a HB. Também foram identificadas as principais razões alegadas para a vacinação incompleta e a não vacinação. Foram excluídos do estudo dois dentistas que relataram já ter tido HB.

A vacinação contra a HB foi determinada através das perguntas "Você já participou de algum programa de imunização contra a hepatite B?" e "No caso de resposta afirmativa, quantas doses você tomou?". As razões para a não vacinação ou vacinação incompletas foram aferidas pela pergunta "Se você não é vacinado(a) ou não completou o esquema vacinal de três doses, qual a principal razão?". A investigação dos fatores associados à vacinação incompleta e à não vacinação contra a HB foi feita comparando-se os profissionais que não tomaram nenhuma dose (não vacinados) ou que tomaram uma ou duas doses (vacinação incompleta) com aqueles que tomaram as três doses da vacina (vacinação completa) em relação às diversas características e fatores incluídos no questionário.

A significância estatística das diferenças observadas foi avaliada usando-se os testes de qui-quadrado para comparação de freqüências. A magnitude da associação entre a variável dependente e os fatores de interesse foram estimados usando-se o odds ratio e o intervalo de confiança de 95%. A análise multivariada foi feita pela de regressão logística multinomial,5 tendo como categoria de referência a vacinação completa, e incluiu todos os fatores associados às variáveis dependentes ao nível de p<0.20.>

RESULTADOS

Dos 299 questionários distribuídos, 296 (99%) foram respondidos, cujos resultados estão a seguir descritos.

A idade dos dentistas estudados variou entre 22 e 73 anos, sendo a média igual a 37 anos (±9,55 DP), sendo 54% do sexo feminino e 59% casado. O tempo de formatura variou de um a 43 anos (média =12 anos, DP=1,3). Tinham algum curso de pós-graduação 42% dos dentistas. A grande maioria (80%) relatou ter feito cursos de reciclagem nos dois anos anteriores a pesquisa. Quanto ao local de trabalho, 43% atendiam somente no consultório particular. Com relação ao estilo de vida, a grande maioria (85%) não fumava, e pouco mais da metade praticava algum esporte e não consumia bebida alcoólica. Cerca de 70% dos participantes se consideraram tranqüilos, 20% preocupados, 7% tensos e 4% melancólicos. Quanto à satisfação com o trabalho, 50% relataram estar muito satisfeitos, e apenas 15% pouco satisfeitos.

Com relação à clientela, 13% indicaram já terem atendido pacientes com sorologia positiva para o HIV e 15% disseram ter atendido pacientes sabidamente portadores do VHB. A prevalência de acidentes com instrumento pérfuro-cortante foi de 26% nos seis meses anteriores à pesquisa e 75% durante a vida profissional.

Dos 296 dentistas entrevistados, 295 responderam à pergunta sobre vacinação contra a HB. Entre os profissionais que foram vacinados, 221 (75%) tomaram as três doses, 40 (14%), apenas duas doses, seis (2%), somente uma dose, e 28 (9%) não tomaram nenhuma dose da vacina. A vacinação completa foi maior entre os que indicaram realizar exclusivamente cirurgia e/ou periodontia (89%).

A principal razão alegada para a não vacinação ou vacinação incompleta foi a necessidade de maiores informações (37%). Dos 16 profissionais que alegaram outro motivo para a não vacinação, seis relataram falta de oportunidade, desinteresse, esquecimento e negligência, três estavam aguardando o tempo necessário para tomar a terceira dose e os demais motivos foram falta de tempo e contra-indicação médica por motivo de gravidez (um não respondeu). Alegaram não achar necessária a vacinação 12% dos dentistas, 10% alegaram medo, 6%, que a vacina era cara, e 4% disseram já ter tido hepatite.

A Tabela 1 apresenta os fatores estatisticamente associados à vacinação contra a hepatite B entre os participantes do estudo. O percentual de não vacinados foi maior entre os homens (70%) que entre as mulheres (30%) e entre aqueles com mais de 40 anos (52%) e com maior tempo de formado (72%). A menor freqüência de reciclagem profissional esteve associada a uma maior prevalência de vacinação incompleta e de não vacina. Quanto maior o tempo de trabalho, maior a prevalência de vacinação incompleta e não vacinação. Entre os profissionais que atendem exclusivamente no consultório particular, foi observado maior relato da vacinação incompleta e não vacinação.

Os profissionais que alegaram não usar sabão líquido anti-séptico apresentaram uma maior freqüência de vacinação incompleta e não vacinação. A vacinação completa também foi menor entre aqueles que não usam luvas, não usam óculos de proteção e usam exclusivamente toalhas de pano (Tabela 1).

Os resultados da análise multivariada multinomial mostraram que os dentistas não vacinados se diferem dos profissionais com vacinação completa em relação aos seguintes fatores: faixa etária mais velha e menor freqüência de reciclagem nos dois anos prévios ao inquérito. Os profissionais com esquema vacinal incompleto só diferiram significantemente daqueles com vacinação completa com relação à menor prevalência de uso de luvas (Tabela 2).

DISCUSSÃO

Os resultados deste inquérito indicam que a prevalência de vacinação completa entre os cirurgiões dentistas de Montes Claros está aquém daquela esperada, especialmente entre as especialidades não cirúrgicas. Na realidade, poucos estudos internacionais encontraram uma prevalência similar à observada no presente trabalho.3,4,9,17 A maioria dos trabalhos no Brasil1,2,7 e alguns trabalhos internacionais8,13 relatam taxas de prevalência inferiores às nossas.

Foi observado no Brasil que, ao longo dos anos, a procura pela vacinação tem aumentado, como conseqüência da campanha nacional contra HB para profissionais da odontologia, promovida pelo Ministério da Saúde com as Secretarias de Saúde e entidades de classe. Entretanto, a prevalência observada ainda é inferior à desejada, especialmente se for considerado que o Ministério de Saúde coloca à disposição, gratuitamente, a vacina para seus profissionais de saúde. As taxas de prevalência de vacinação em países como a Inglaterra6 (93%) e Canadá (91%), que também oferecem gratuitamente a vacina para os profissionais de saúde, são bem superiores à identificada em Montes Claros. Entretanto, uma pesquisa conduzida na Universidade Federal de Uberlândia, entre dentistas e estudantes, revelou altos índices de vacinação (82% para dentistas e 92% para acadêmicos). Os altos índices podem estar associados à recente campanha de vacinação entre profissionais e universitários.11

As taxas de prevalência obtidas no presente estudo não podem ser diretamente comparáveis às de alguns estudos nacionais e internacionais, uma vez que eles foram conduzidos em população voluntária ou não deixaram clara a metodologia de seleção da amostra, podendo estar sujeitos a viés de seleção que influenciam os resultados.4,7,13

O presente trabalho abordou as principais razões alegadas para a não vacinação ou vacinação incompleta, questão pouco estudada. Em outra pesquisa conduzida no Brasil, as principais razões para não vacinação foram a negligência e o descaso, além do alto custo da vacina e a dificuldade para sua obtenção.1 Surpreendentemente, apesar da ampliação do debate sobre os riscos biológicos no trabalho odontológico, em especial após o advento da Aids, a principal razão alegada para a não vacinação ou vacinação incompleta foi necessitar de maiores esclarecimentos. Este achado é consistente com os resultados da análise multivariada que identificou maior risco de não vacinação entre os profissionais com menor freqüência de reciclagem profissional nos dois anos prévios ao inquérito.

A maior prevalência de vacinação entre as coortes profissionais mais jovens, com menos tempo de formado, denota o impacto da incorporação e reforço das questões referentes a bio-segurança no currículo dos cursos de graduação, especialmente a partir da década de 90. A associação entre vacinação e medidas de controle da infecção, como o uso de luvas, óculos de proteção e toalhas descartáveis reforçam a idéia de uma mudança de atitude mais global, apesar de apenas o não uso de luva ter se mantido associado à vacinação incompleta na análise multivariada.

A alta prevalência de acidentes com instrumento pérfuro-cortante entre os dentistas estudados reforça a importância de aumentar a cobertura vacinal neste grupo, uma vez ser este o fator de risco mais importante para a transmissão ocupacional da hepatite B entre dentistas.12

O risco do dentista ou do paciente adquirir a infecção pelo VHB durante o atendimento odontológico não é alto, mas a transmissão pode ocorrer do paciente para o dentista, do dentista para o paciente e de um paciente para outro.12 Nos acidentes pérfuro-cortantes, com sangue sabidamente contaminado, o risco de transmissão do VHB varia de 6% a 30%, sendo que uma pequena quantidade de sangue contaminado (0,0001 ml) é suficiente para a transmissão do vírus.12

A participação no presente estudo foi muito elevada, reforçando a validade interna dos resultados obtidos. Entretanto, a aferição da vacinação baseada em relato pode levar a uma superestimação da prevalência de vacinação entre os dentistas, visto que a maioria conhece a importância desta medida. Porém, as dificuldades logísticas para a aferição de marcadores de resposta vacinal junto com o relato de vacinação explicam porque a maioria dos estudos nacionais e internacionais sobre a questão optou pelo questionário.1-4,6,8-11,13,17 No presente estudo, a não-identificação do cirurgião dentista objetivou aumentar a confiabilidade da informação obtida.

Concluindo, apesar da prevalência de vacinação entre os dentistas estudados ser mais alta que aquela relatada na maioria dos estudos nacionais, ainda não é satisfatória. Os presentes resultados indicam que a vacinação contra HB está crescendo entre as coortes de cirurgiões dentistas formados mais recentemente e entre aqueles que se reciclaram nos dois anos prévios ao estudo. A falta de informação, possivelmente relacionada à menor reciclagem profissional, parece ser um dos principais fatores limitantes da vacinação, especialmente entre os dentistas com mais tempo de clínica, e sugere a importância de iniciativas desta natureza, uma vez que o Ministério de Saúde disponibiliza gratuitamente as doses da vacina para os profissionais da área da saúde.

AGRADECIMENTOS

À cooperação do Conselho Regional de Odontologia -Seção Montes Claros, à Secretaria Municipal de Saúde de Montes Claros e aos dentistas que participaram do estudo.

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Endereço para correspondência
Sandhi Maria Barreto
Departamento de Medicina Preventiva e Social
Faculdade de Medicina da UFMG
Av. Professor Alfredo Balena, 190
30130-100 Belo Horizonte, MG, Brasil
E-mail: andreab@pib.com.br

Parte da dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-graduação em Saúde Pública da Universidade Federal de Minas Gerais, em 2001
Recebido em 7/3/2002
Reapresentado em 6/12/2002
Aprovado em 10/1/2003


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Clareamento gengival: ensino e etnocentrismo

Ciência & Saúde Coletiva

version ISSN 1413-8123

Ciênc. saúde coletiva vol.15 supl.1 Rio de Janeiro June 2010

doi: 10.1590/S1413-81232010000700090

ARTIGO ARTICLE

Clareamento gengival: ensino e etnocentrismo

Gingival bleaching: teaching and ethnocentrism

Edson Daruich BollaI; Paulete GoldenbergII

IDepartamento de Psicologia da Educação, Faculdade de Educação, UNICAMP. Av. Bertrand Russel 801, Cidade Universitária "Zeferino Vaz". 13083-865 Campinas SP. edsonbolla@bol.com.br
IIPrograma de Pós-graduação em Ensino em Ciências da Saúde, Centro de Desenvolvimento do Ensino Superior em Saúde, Universidade Federal de São Paulo


RESUMO

O estudo objetivou identificar os padrões de estética bucal/gengival subjacentes à formação e prática profissional do cirurgião-dentista, na perspectiva do etnocentrismo. A partir da análise documental e da realização de entrevistas (semiestruturadas) com cirurgiões dentistas formados há dez ou mais anos, o estudo recorreu a uma abordagem qualitativa, ancorada na análise temática. No âmbito do ensino da periodontia, o estudo evidenciou que a presença da pigmentação fisiológica é omitida ou tratada como uma alteração de normalidade e/ou antiestética. Todos os entrevistados aprenderam a realizar o clareamento gengival em nível de pós-graduação, sendo estimulados a ofertar tal procedimento em nome de um sorriso saudável e bonito. Diante da supervalorização da eficiência da técnica, ressalta a ausência da discussão da questão estética na perspectiva étnica. Parece que a oferta do clareamento gengival se faz norteada pelo padrão branco de beleza, evidenciando o caráter etnocêntrico do procedimento.

Palavras-chave: Etnocentrismo, Embranquecimento, Clareamento gengival


ABSTRACT

The aim of this study was to identify buccal/gingival cosmetic dentistry patterns subjacent to formation and professional practice of the dental surgeon from the ethnocentrism point of view. This is an exploratory study with a qualitative approach based on the thematic analysis. Initially a documental analysis was carried out. Thereafter, dental surgeons were interviewed and semi-structured questions were applied. In the Periodontal teaching field, this study showed that the presence of racial melanosis is omitted or treated as an alteration in the normality patterns and it is considered anti-aesthetic. All the interviewers learnt how to practice gingival bleaching in the post-graduation courses, they were all encouraged to offer this cosmetic dentistry procedure with the opportunity of obtaining a beautiful and healthy smile, thus assuring the belief of the Caucasian racial aesthetic superiority. This study make us think that the offer of gingival bleaching is oriented by the Caucasian pattern of beauty evidencing the ethnocentric character of this procedure.

Key words: Ethnocentrism, Whitening, Gingival Bleaching


Introdução

Objetivando identificar padrões de estética bucal/gengival subjacentes à formação e prática profissional do cirurgião-dentista, focalizamos, no presente estudo, o exercício do clareamento gengival na perspectiva do etnocentrismo.

Segundo Thomaz1, o etnocentrismo "[...] consiste em julgar como certo ou errado, feio ou bonito, normal ou anormal os comportamentos e as formas de ver o mundo dos outros povos a partir dos próprios padrões culturais [...]". Ainda que caminhem juntos, etnocentrismo e racismo não são a mesma coisa. Lévi-Strauss, citado por Machado2, afirma que não se pode confundir o racismo - considerado como uma [...] doutrina falsa que pretende ver nas características intelectuais e morais atribuídas a um conjunto de indivíduos [...] o efeito necessário de um patrimônio genético comum - com a atitude de indivíduos ou grupos cuja fidelidade a certos valores os torna parcial ou totalmente insensíveis a outros valores. Entendendo que as posturas etnocêntricas podem evoluir para um racismo, particularmente diante do intenso processo de inclusão-exclusão sociais em nosso meio, consideramos a definição de Munanga3: "O racismo é uma crença na existência das raças naturalmente hierarquizadas pela relação intrínseca entre o físico e o moral, o físico e o intelecto, o físico e o cultural".

No Brasil, como refere Carneiro4, tem sido usual sustentar a imagem de uma nação cordial, caracterizada por apresentar um povo pacífico e sem preconceito de "raça", sendo que durante anos alimentamos a idéia de que vivemos uma democracia racial. Entretanto, tal democracia racial não existe, haja vista as desigualdades e limites de oportunidades oferecidas aos negros ao longo da história.

De acordo com Soligo5, em 1501, se inicia a história do negro no Brasil. A transição do trabalho indígena para o africano explica-se pelo tráfico negreiro que abriu caminho a um negócio rendoso, de alto valor comercial6.

Segundo Schwarcz, citado por Haag7, no final do século XIX, se afirmava que a mistura racial era prejudicial e que um país formado por muitos segmentos raciais estava fadado à decadência. Segundo a autora, Nina Rodrigues, assumindo o "darwinismo racial", preconizava a separação racial: a seleção natural daria cabo, no processo competitivo, dos segmentos inferiores que seriam postos sob controle ou eliminados. No período pós-abolicionista - expressando uma modalidade de racismo à brasileira, segundo Domingues8 - o branqueamento era apresentado como um processo irreversível no país. Pelas estimativas mais "confiáveis", o tempo necessário para a extinção do negro em terra brasileira oscilaria entre cinquenta e duzentos anos. Bernardino9 afirma que, ao lado do mito da democracia racial, arquitetou-se no Brasil o ideal do branqueamento como uma política nacional de promoção da imigração européia que visava suprir a escassez de mão de obra resultante da abolição e modernizar o país através da atração de mão de obra européia.

A ideologia do embranquecimento apresenta o branco como modelo de beleza e de sucesso. A hierarquização das pessoas em termos de sua proximidade a uma aparência branca ajudou a fazer com que indivíduos de pigmentação escura desprezassem a sua origem africana, cedendo assim à forte pressão do branqueamento, levando-os a fazer o melhor possível para parecerem mais brancos10.

Segundo Carneiro4, existe um preconceito velado em nossa sociedade, no qual dificilmente encontramos nas falas dos indivíduos a sua explicitação. Tal pensamento está nas formas de agir, nas opiniões e opções que os sujeitos fazem julgando os negros - como inferiores - pela cor de sua pele e não pela sua capacidade, índole e caráter. Para a autora, no Brasil, tem sido usual sustentar a imagem de um país cordial, caracterizado pela presença de um povo pacífico, sem preconceito de raça e religião.

Tal negação do racismo acaba por propiciar a hegemonia do branco e, nesse âmbito, se inscreve a formação do clareamento gengival, apresentado aos discentes de odontologia como uma técnica resultante dos avanços profissionais.

Os primeiros cursos de graduação em odontologia, no Brasil, foram criados em outubro de 1884, nas Faculdades de Medicina da Bahia e do Rio de Janeiro. Em 1898, foi fundada a Escola (privada) Livre de Farmácia e Odontologia em São Paulo, sendo que em 1933 se concretiza a separação dos cursos de odontologia das escolas médicas6.

No processo de reorganização do ensino médico nos Estados Unidos e Canadá, o Relatório Flexner, publicado em 1910, refletiu no ensino superior, defendendo a inserção das escolas de medicina nas instituições universitárias. O relatório previa a criação de departamentos em lugar de cátedras e o desenvolvimento de ensino e pesquisa, destacando a formação em ciências. Tais disposições comportariam a criação do ciclo básico antecedendo ao ciclo profissionalizante, assim como a incorporação do hospital como campo de treinamento na formação de médicos. A reprodução de igual movimento no âmbito da odontologia, de acordo com Gies, citado por Oliveira6, constituiria a base para o desenvolvimento tecnológico ao lado do desenvolvimento das especialidades que consubstanciariam o caráter tecnicista da formação em odontologia em nosso meio.

No decorrer da trajetória desencadeada a partir da reforma universitária (que se instala em 1968), reafirma-se o desenvolvimento da pesquisa com a instalação da pós-graduação que suportaria propostas da formação especializada de recursos humanos.

Nas décadas seguintes, no contexto da intensificação da globalização, renovam-se as propostas relativas ao processo ensino/aprendizagem, sendo preconizadas reformas curriculares, assegurada a flexibilidade no tocante à sua organização. A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional11 de 1996, destacando a necessidade de atender às demandas sociais, no artigo 43, propõe estimular a criação cultural e o desenvolvimento do espírito crítico e do pensamento reflexivo. Tal lei dispõe sobre a extinção dos currículos mínimos, desencadeando as proposições em torno de mudanças curriculares explicitadas pelas Diretrizes Curriculares Nacionais (2001). Desde o final de 2001, os cursos de odontologia começaram a buscar soluções, cumprindo as exigências de elaboração de projetos político-pedagógicos, dando conta de mudanças curriculares envolvendo a profissionalização do trabalho docente.

Para Péret e Lima12, a formação do professor de odontologia tem sido baseada na racionalidade técnica, fundada na filosofia positivista. Assim, são considerados profissionais competentes aqueles que solucionam problemas instrumentais, mediante aplicação de teorias e práticas derivadas de conhecimento sistemático. O conhecimento emergente das particularidades dos contextos sociais e culturais dos cidadãos não tem sido enfocado nesse modelo, o que induz à necessidade de repensar a formação dos professores em uma dimensão humana e crítica. Isso se aplica à ausência de considerações de questões relativas às desigualdades sociais na formação odontológica ao lado da supervalorização da técnica. Neste sentido, coloca-se como exemplar a problemática da estética enquanto expressão de preferências no convívio com a diferença.

Segundo Bertollo e Oliveira13, a percepção da beleza é individual, ao mesmo tempo em que se inscreve num quadro de referência cultural. Segundo Mandarino14, a estética é pessoal e subjetiva, variando conforme a época e a região em que as pessoas vivem. Para ele, os padrões estéticos da sociedade atual exigem um sorriso bonito e harmonioso, incentivando a procura de tratamento odontológico para correções de imperfeições dentárias.

Katz15 afirma acreditar que a beleza é uma conquista e não um dado genético, pois ela se conquista dentro de um grupo social. Afirma, ainda, que é sempre uma luta muito difícil alcançar o que deve ser o corpo para corresponder a um padrão, lembrando que a conquista da beleza é infinita: é um movimento incessante na busca de uma perfeição que não é nem definida.

Discutindo a questão estética da população negra, Gould16, ao comentar sobre as idéias de alguns abolicionistas, dentre eles Benjamin Franklin, relata que, mesmo entre aqueles que consideravam a inferioridade dos negros como puramente cultural, a frequência do juízo estético que determinava a superioridade da população branca em detrimento das demais era surpreendente.

Em resposta à busca pela "perfeição não definida"17, mas associada ao padrão branco de beleza, é que muitas técnicas terapêuticas de modificações de caracteres presentes em pessoas não brancas têm sido desenvolvidas com o intuito de assemelhá-las aos padrões estéticos vigentes na sociedade ocidental: o padrão estético da população branca (branqueamento estético).

Domingues discute o que denomina de "branqueamento estético" no Brasil. Para ele, a ideologia do branqueamento se expressava no terreno estético. O modelo branco de beleza, considerado padrão, pautava o comportamento e a atitude de muitos negros assimilados. Tal ideologia foi um fetiche muito eficaz na alienação do negro. Oficializou a brancura como padrão de beleza, o que representou um entrave para a formação positiva da autoestima do negro.

Os avanços da tecnologia e da pesquisa no ramo da cosmética, na atualidade, vêm permitindo o refinamento e a perpetuação do branqueamento estético. A odontologia passou, segundo Mandarino, a seguir caminhos que vão além de técnicas restauradoras, buscando restabelecer a função, a estética e o bem-estar do cliente, devolvendo-lhe a autoestima, o prazer em sorrir, ou seja, o prazer em viver.

A propósito da busca contemporânea pela renovação do ensino, reafirma-se a preocupação com os padrões de estética bucal/gengival que orientam a formação prática do cirurgião- dentista, tendo por suspeita que a realização do clareamento gengival - envolvendo uma postura etnocêntrica - se faz norteada pelo padrão branco de beleza. Neste sentido é que nos propomos a trabalhar os referenciais de beleza vigentes no ensino da periodontia no tocante ao clareamento gengival, assim como identificar as concepções de estética bucal do cirurgião-dentista subjacentes à prática do referido procedimento.

Métodos

O presente estudo, em caráter exploratório, envolveu três movimentos investigativos: (1) caracterização do clareamento gengival no plano do ensino e da aprendizagem - exclusivamente - da disciplina de periodontia; (2) identificação dos conceitos de estética bucal/gengival subjacentes à prática do clareamento gengival, entre negros e caucasianos; (3) qualificação, tanto da formação como da prática, do clareamento gengival na perspectiva do etnocentrismo.

No tocante ao ensino da periodontia, o estudo partiu da investigação documental, sendo consultadas as ementas da disciplina de periodontia de duas escolas de odontologia do Estado de São Paulo: uma pública e outra privada; livros didáticos da área de periodontia; publicações em bases de dados através da Biblioteca Virtual de Saúde.

Na análise documental, foram priorizados os objetivos e referências bibliográficas da disciplina de periodontia nos cursos de graduação de odontologia de duas instituições, os padrões estéticos vigentes, as técnicas preconizadas para a realização do clareamento gengival, na periodontia, as justificativas apresentadas para a realização da prática de tal procedimento cirúrgico entre pacientes negros e a abordagem da questão racial.

As informações acerca do ensino da periodontia no tocante ao clareamento gengival foram complementadas com entrevistas semiestruturadas, com profissionais da área de odontologia. Como critério de inclusão na população de estudo, consideramos cirurgiões-dentistas que tivessem concluído a graduação há dez anos ou mais e que realizavam o clareamento gengival em seus consultórios e/ou clínicas. Participaram do estudo quinze profissionais.

A apreensão das concepções de beleza do cirurgião-dentista, no tocante ao clareamento gengival, levou em conta as informações obtidas a partir das entrevistas realizadas, nas quais se priorizou o perfil dos entrevistados (gênero, idade, tempo de formação, natureza da instituição formadora e titulação), identificação dos motivos que levaram os entrevistados a optar pela odontologia e apreensão e caracterização dos padrões estéticos vigentes na formação e na prática dos cirurgiões-dentistas do bairro do Tatuapé.

Tanto em relação à consideração dos documentos como das respostas registradas nas entrevistas, realizou-se a análise de conteúdos para efeito de apresentação dos dados e, dentre suas modalidades, optou-se pela análise temática, tendo por referência a perspectiva do etnocentrismo.

O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética da Unifesp, os entrevistados assinaram um termo de consentimento livre e esclarecido (TCLE) e o anonimato destes foi assegurado.

Resultados e discussão

Formação do clareamento gengival: análise de documentos

A disciplina de periodontia, em ambas escolas consultadas, tem como propósito o embasamento teórico-prático do aluno. No que tange à saúde do paciente, a preocupação vai além do tratamento da doença já instalada, sendo assinalada a capacidade de prevenir a doença periodontal. No caso da escola privada, destacou-se a preocupação com o desenvolvimento dos aspectos afetivos relacionados ao atendimento ao paciente. Em ambas ementas, a abordagem formal da questão estética está ausente.

Três livros-textos da periodontia foram localizados na biblioteca da Faculdade de Odontologia da USP, sendo focalizado o olhar para a descrição da anatomia macroscópica da gengiva e o que estas obras consideravam como normal, fisiológico.

No "Tratado de Periodontia Clínica e Implantologia Oral", de Lindhe17, o primeiro capítulo do livro, denominado "Anatomia do Periodonto", descreve a anatomia macroscópica da gengiva, no que tange à cor desta, da seguinte maneira: A gengiva é a parte da mucosa mastigatória que cobre o processo alveolar e circunda a porção cervical dos dentes. [...] Em direção à coroa, a gengiva de cor rósea termina na margem gengival livre, que possui um contorno festonado. [...] A gengiva livre, que tem cor rósea, superfície opaca e consistência firme, compreende o tecido gengival das partes vestibular e lingual ou palatina dos dentes.

[...] Com textura firme e cor rósea, a gengiva inserida com frequência mostra uma superfície que apresenta uns pontilhados delicados, o que lhe confere o aspecto de casca de laranja [grifo nosso].

Em nenhum momento do primeiro capítulo, tal obra citou a existência da pigmentação fisiológica (melanina - ou melanose racial) predominante na população negra, enquanto que "cor rósea" apareceu três vezes, sugerindo ser esta a condição normal, referenciando o padrão anatômico predominante na população branca.

No livro "Periodontia Clínica de Glickman" de Carranza Jr.18, a abordagem da cor da gengiva está descrita também no capítulo 1, no tópico "Os Tecidos do Periodonto". Tal temática é descrita da seguinte maneira: A cor da gengiva inserida e marginal é geralmente descrita como rosa-claro, e é produzida pela vascularização, [...]. A cor varia em diferentes pessoas e parece estar correlacionada à pigmentação cutânea. É mais clara nos indivíduos louros de pele branca do que nos morenos.

Após tal descrição, a obra apresenta, ainda no mesmo capítulo, um tópico denominado "Pigmentação Fisiológica (Melanina)", no qual afirma que: A melanina [...] é responsável pela pigmentação normal da pele, gengiva e membrana mucosa bucal. Está presente em todos os indivíduos, [...] A pigmentação melânica na cavidade bucal é acentuada nos negros.

Diferentemente da obra anteriormente discutida, que simplesmente omitiu a existência e a normalidade da melanose racial, nessa segunda obra consultada, já existem referências sobre tal característica no primeiro capítulo. Entretanto, é importante verificar que o autor descreveu a gengiva como um tecido de cor rósea e apresentou ao leitor algumas informações pertinentes a esse tecido. Somente após ter concluído tal raciocínio, o conceito da pigmentação fisiológica é introduzido, afirmando que esta se apresenta, acentuadamente, na população negra.

No terceiro livro consultado, "Periodontia Clínica", de Machado19, o capítulo 1, "Anatomia do Periodonto", descreve a anatomia macroscópica da gengiva da seguinte maneira: Na boca, encontramos três tipos distintos de mucosas: especializada, mastigatória e de revestimento. [...] A gengiva recobre o processo alveolar que circunda os dentes: em indivíduos caucasianos, possui coloração rósea e consistência firme; em negros e asiáticos, apresenta também significativa quantidade de melanina.

Tal obra reconhece desde o início o que é normal em distintos grupos étnicos. Para os caucasianos, uma gengiva rosa e, para os negros, uma gengiva que apresenta também significativa quantidade de melanina. Sem omissões, sem confundir/associar a melanose racial como um desvio da normalidade e sem hierarquizar as informações.

Focalizando a consideração da questão racial nos textos sobre o clareamento gengival, registramos no "Compêndio Terapêutico Periodontal" de Lascala20 que, no capítulo sobre "Gengivectomia/gengivoplastia", o autor explicita que a gengivoplastia "[...] visa, única e exclusivamente, à obtenção de uma arquitetura gengival anatomofisiológica". Dentre as indicações de tal técnica, a "eliminação de pigmentação melânica" se faz presente.

Quando da descrição da eliminação da melanose racial, o autor afirmou que A presença da melanina, sob diversas formas, no tecido gengival de pacientes melanodermos, não é de maneira alguma, sinal de patologia, apenas uma variação da normalidade. Nesses casos a indicação da gengivoplastia se dá apenas por razões estéticas.

Primeiramente, o texto explicitou que tal técnica cirúrgica "visa, única e exclusivamente, à obtenção de uma arquitetura gengival anatomofisiológica". Ou seja, devolver à gengiva forma e funções normais. Esta mesma abordagem se expressou nas indicações da técnica envolvendo a eliminação da pigmentação melânica (melanose racial) que pese o caráter exclusivamente estético de tal procedimento. Ficou implícito que o propósito de devolver a forma normal à gengiva está associada à eliminação da melanose racial. Considerando que tal procedimento cirúrgico visa devolver forma e função normais, o autor associa a estética à saúde.

Em relação ao levantamento de periódicos da área de periodontia, encontramos um artigo sobre o clareamento gengival, referenciado na Lilacs e na BBO com o título "Três diferentes técnicas cirúrgicas empregadas no clareamento gengival" de Amorim Lopes, Lopes, Silva e Almeida21. Os autores preconizam diferentes técnicas para a realização do clareamento gengival, destacando a praticidade dos procedimentos, aparelhagem simples, baixos efeitos colaterais e resultados alcançados.

No artigo, encontramos duas referências explicitando a opinião dos autores quanto à presença da melanose racial. Na sinopse, referem que "A hiperpigmentação gengival pode causar problemas estéticos, especialmente em pacientes com sorriso gengival [...]".

Após a descrição de um caso clínico, afirmam que "[...] O sorriso agora parece estar mais atraente, satisfazendo completamente a expectativa da paciente".

Os autores explicitaram, nestas falas, que acreditam que a hiperpigmentação gengival é uma característica antiestética e que os pacientes que se sujeitam à melanoplastia (cirurgia para remoção da melanose racial) ficam mais atraentes, logo, mais bonitos.

De acordo com Rocha22, os livros didáticos, em função mesmo do seu destino e de sua natureza, têm um valor de autoridade, ocupando um lugar de supostos donos da verdade. Suas informações obtêm tal valor de verdade pelo simples fato de que quem sabe seu conteúdo é aprovado. Seu saber tende a ser visto como algo rigoroso, sério e científico. Os estudantes são testados em face do seu conteúdo, o que faz com que as informações neles contidas acabem se fixando no fundo da memória de todos nós. Com ela, se fixam também imagens etnocêntricas.

A maioria das obras consultadas nesta análise de documentos sinaliza que o ensino da periodontia, no que diz respeito à descrição da anatomia macroscópica do periodonto - destacando a gengiva - e das indicações de remoção da pigmentação melânica (fisiológica) privilegiam as características da população branca.

Formação do clareamento gengival: entrevistas

Com relação ao perfil dos entrevistados, observamos um grande contingente feminino, formados entre dez e quinze anos e provenientes de escolas públicas e privadas.

Quase 50% dos sujeitos da amostra responderam ter afinidade com a área da saúde. Prazer em cuidar, a presença de algum familiar exercendo a odontologia e gostar de trabalhar com a estética também fizeram parte dos argumentos relevantes para a escolha da odontologia entre os entrevistados. Trazendo implícita a crença na supremacia estética da população branca, o entrevistado refere: Eu acho que as pessoas devem se sentir bonitas. É importante. Eu gosto de poder contribuir para que isso aconteça. Clarear a gengiva é uma das coisas que tornam a pessoa mais bonita. (Entrevistado C)

A questão da estética nos cursos de odontologia está presente, sendo referenciada por múltiplas disciplinas. Na periodontia, ela se coloca prioritariamente relacionada à preservação de uma gengiva saudável, sendo por todos ressaltada sua importância para um sorriso bonito, ao qual se associa a importância da estética na vida social, pessoal e profissional. Associando o aspecto saudável à beleza, os entrevistados afirmaram que: Hoje a sociedade dá uma ênfase grande à questão estética. Ter uma gengiva saudável, sem inflamações, sem retrações, é desejado. Para se ter um sorriso bonito, temos que ter uma gengiva bonita também. (Entrevistado C)

Perguntados sobre o que lhes foi dito, durante a graduação, a respeito de um sorriso bonito, onze entrevistados fizeram referência à coloração branca dos dentes associada a tamanhos e formas regulares, além da ausência de cáries; nove entre eles fizeram referência à gengiva de cor rósea, saudável e sem edemas; e três entrevistados explicitaram gengivas sem manchas.

Tais resultados mostram que mais da metade dos entrevistados recordavam ter aprendido que um sorriso bonito era um sorriso associado a uma gengiva livre de pigmentos e com coloração rósea. Valorizando a gengiva característica da população branca, estas lembranças sinalizaram para uma postura etnocêntrica, visto que a gengiva da população negra é por vezes pigmentada e tem uma coloração que tende para tons mais escuros. A propósito, são significativas as falas: Uma gengiva rosa, sem manchas, com aspecto saudável, com "cara" de saúde e dentes muito brancos, com tamanhos regulares, com forma bonita. Socialmente legal. (Entrevistado C)

Focalizando, especificamente, a temática do clareamento gengival, perguntamos aos entrevistados se esse tema havia sido abordado na graduação, em que condições e em que ocasião eles aprenderam a realizar a(s) técnica(s). Apenas três entrevistados afirmaram recordar referências ao tratamento de tal temática na graduação, evidenciando que o clareamento gengival foi pouco discutido nos cursos de odontologia entre alunos formados até 1996.

Os três dentistas que se recordaram da abordagem do clareamento gengival no curso de graduação mencionaram que ele foi apresentado como uma intervenção puramente estética, descolada da questão racial. As discussões sobre o procedimento do clareamento gengival se davam no plano técnico-biológico: Quanto à abordagem dos professores, eles não ficavam falando que era coisa de negro, que era uma questão do branco ser mais bonito que o negro e etc. Eles simplesmente falavam das técnicas, das indicações, de como fazer e etc. Uma coisa é fato: uma gengiva sem melanose é mais bonita que uma com melanose. (Entrevistado H)

As falas do Entrevistado H revelam a aparente neutralidade da técnica. Quando este entrevistado afirma que uma gengiva sem melanose é mais bonita, identificamos a naturalização do padrão estético vigente da população branca.

Todos os entrevistados afirmaram que aprenderam a técnica da remoção da pigmentação fisiológica após a conclusão da graduação. Para estes dentistas, o aprendizado de tal técnica ocorreu em nível de pós-graduação.

Os entrevistados afirmaram, também, que nunca participaram de discussões acerca das características da população negra associadas à melanose racial e sua remoção. As justificativas se pautavam pela argumentação em torno do padrão de estética almejado em nome de um sorriso bonito: Pra dizer a verdade, não me recordo nem uma vez de termos discutido esses problemas. Nosso curso é da área da saúde, não de psicologia. Quem tem que discutir isso é o pessoal das humanas. Nosso papel é outro. Discutimos saúde, não neuroses. Se os negros se sentem inferiores, quem resolve isso são os psicólogos. Nós cuidamos da saúde. (Entrevistado D)

A beleza se circunscreve neste conjunto de respostas a uma questão individual como se a subjetividade não tivesse relação com as condições socioculturais na qual ela se desenvolve. Na verdade, os entrevistados não associam a configuração de padrões estéticos no âmbito dos grupos étnicos. Nesse sentido, não associam o clareamento gengival à questão racial.

Quando o Entrevistado D afirmou que os negros "se sentem inferiores", ao mesmo tempo em que reconhece a existência de desigualdades sociais e exclusão, ancoradas na hierarquização dos indivíduos (como colocam Munanga3, Guimarães23 e Soligo5, entre outros); ele atribui o sentimento de inferioridade aos próprios negros. Ao colocar que o problema de sentimentos não constitui questão a ser considerada pelos dentistas, o entrevistado não situa a inferioridade no plano das relações sociais e de poder existentes na sociedade.

Em relação à convivência com os negros durante a graduação, os entrevistados afirmaram que em suas turmas havia de dois a três mulatos/negros, sendo que não necessariamente nas respectivas turmas. Quatro afirmaram não se recordar de alunos negros no curso. Na pós-graduação, apenas dois entrevistados afirmaram que havia dentistas "mulatos" em suas turmas.

Estes dados são reveladores do elitismo do ensino e das limitadas oportunidades de acesso do negro ao ensino superior, em meio à exclusão social. Uma pesquisa realizada pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep)24 revelou que a média geral de representação da população negra nos cursos universitários era de apenas 3,6%, e somente 0,8% dos alunos matriculados nos cursos de odontologia de escolas públicas e privadas do Brasil eram negros. A propósito, são ilustrativas as falas: Na graduação, havia uma moça negra, na minha especialização, não. Ela era tranquila, não ficava se preocupando. E era boa aluna também. Lembro que ela tinha boas notas. Não tive muito contato com ela. (Entrevistado F)

No meu curso de aperfeiçoamento tinha [um aluno negro], mas era um rapaz mulatinho, não negro, daqueles super escuros. Ele era até bonitinho, sabia? Tinha o cabelo liso, não era "pichaim", tinha os dentes bonitos. Não lembro de ele ter falado alguma coisa sobre o clareamento gengival. Nem sei se a gengiva dele era manchada. Se era não dava para perceber. Mas ele não era negro, era só mulato. (Entrevistado I)

No plano discursivo, ao lado do reconhecimento da pequena presença de negros, estas falas remetem a um preconceito velado, explicitado no espanto das considerações a respeito dos colegas negros, expresso nas construções adversativas. Partilhando de um convívio no qual os negros e/ou mulatos não pareciam questionar a própria negritude, os entrevistados se referiram aos alunos negros dizendo que "e (ela) era boa aluna" ou "ele era até bonitinho, sabia?" "tinha o cabelo liso, não era 'pichaim'", etc. Ao tecer tais comentários, eles assumiam a valorização negativa da diferença e o posicionamento de desagrado em relação aos traços étnicos diferenciados por referência aos padrões do continente grupal branco do qual faziam parte. Tais comentários nos remeteram ao conceito de racismo segundo Munanga5.

Neste contexto, se enquadra a consideração do clareamento gengival enquanto técnica, despojada da consideração da questão sociorracial subjacente à qualificação do procedimento de embelezamento no plano estético.

Em meio ao desconforto que a discussão sobre a questão racial suscitou entre os entrevistados, se destaca a "neutralidade" da técnica que o procedimento do clareamento gengival envolve. Ratificando as disposições, foi explicitado a propósito do ensino: Que eu me lembre, ele não falava nada. Acho que nem tinha que falar nada mesmo, por que iria ser contra a explicação de uma técnica? Ninguém estava agredindo ele. (Entrevistado I)

Todos os entrevistados afirmaram que eram estimulados a ofertar - no que tange à periodontia - o clareamento gengival aos pacientes portadores de melanose racial, tanto no curso de especialização como nos cursos livres, de aperfeiçoamento ou estágios, reiterando que se tratava de um procedimento estético.

Negando o viés etnocêntrico associado à concepção de beleza, a indicação da prática do clareamento gengival era estimulada junto aos pacientes, ancorada na argumentação de que, sendo uma característica pertencente a um determinado grupo de pessoas, não se tratava de uma doença, mas tão somente de uma prática de embelezamento. A propósito da pergunta se os entrevistados indicavam o clareamento gengival aos seus pacientes, são ilustrativas as referências sobre o estímulo da indicação do procedimento: Tudo que era de melhor para os pacientes, eles nos faziam indicar. No curso [de pós-graduação], eu fiz dois clareamentos gengivais. Ficaram lindos. Eu falava para os pacientes que não precisavam se preocupar, pois era uma característica da raça deles, mas que deveriam remover, pois era antiestético. Eles concordaram e eu fiz. (Entrevistado D)

Sempre fomos estimulados a indicar o que é o melhor para os pacientes. Se acreditarmos que um clareamento gengival tornará aquele paciente mais bonito, mais apresentável, por que não indicar? Éramos estimulados, sim. E é certo. Sempre avisei que não era uma doença. (Entrevistado C)

Reafirmando a concepção da pigmentação gengival como antiestética, sob a eficiência da técnica, professores de periodontia e alunos endossavam a proposição do clareamento gengival que alimenta o embranquecimento do negro na vigência da valorização do padrão branco de beleza.

A prática do clareamento gengival

Todos os dentistas entrevistados afirmaram que realizavam o clareamento gengival. Alguns o faziam raramente e outros faziam cerca de um a três clareamentos gengivais por mês: Não sei te dizer exatamente quantos eu faço por mês. É raro. Não são muitos, pois não atendo muitos pacientes negros no meu consultório. Você sabe qual é a realidade dos negros. Eles não têm muito acesso a dentista. Eu só atendo particular, e não sou da rede pública. (Entrevistado L)

Perguntados sobre a demanda da parte de pacientes, a maioria afirmou que atendia poucos negros porque não trabalhavam com convênios. Alguns entrevistados afirmaram que atendem alguns mulatos e negros, mas que estes não chegam a 50% dos seus pacientes.

Com o propósito de identificar se a população negra que vai ao consultório destes dentistas solicitava espontaneamente o clareamento gengival, identificamos que cerca de um quarto dos entrevistados responderam afirmativamente e os restantes afirmaram que os pacientes, em geral, desconheciam a possibilidade de clarear a gengiva: É difícil, não pedem pra fazer a melanoplastia porque eles não sabem que é possível remover as manchas. (Entrevistado O)

Os entrevistados que responderam serem procurados para a realização de tal técnica afirmaram que a justificativa apresentada pelos pacientes era que estes achavam as manchas feias ou simplesmente aspiravam ficar mais bonitos, evidenciando o desejo de embranquecer-se: Eles acham as manchas feias, se incomodam com elas, querem tirar. (Entrevistado C)

Eles dizem que querem ficar mais bonitos, se incomodam com as manchas. E é feio mesmo, né? (Entrevistado F)

Doze entrevistados declararam oferecer o clareamento gengival aos portadores de melanose racial. Questionados sobre quando e porque, dois afirmaram que ofereciam em quaisquer circunstâncias; outros o faziam quando percebiam que o paciente se preocupava com a aparência ou quando o paciente apresentava um sorriso gengival que interferia na estética. Um entrevistado afirmou oferecer o clareamento gengival quando notava que os pacientes tinham condições financeiras de realizar o tratamento.

Todos os entrevistados compartilhavam da crença de que o clareamento gengival deixa os pacientes com um sorriso mais bonito, ressaltando-se que fazia parte de seu papel profissional informar aos pacientes aquilo que existe de mais moderno dentro da odontologia: Sugiro. Eles nem sempre conhecem o serviço. Eu sugiro quando o paciente tem condições financeiras de fazer e interessa. Por que eu sugiro? Para vender [risos]. Uma vez que a pessoa clareia os dentes, fica bonito. Mancha é mancha, não importa em quem está instalada. Igual nos brancos que removem manchas do rosto, por que o negro não pode remover as manchas da gengiva? (Entrevistado C)

Sugiro sempre. Eu sugiro porque é um plus que eu posso oferecer aos meus pacientes, pois nem todo dentista faz e eles ficam muito mais bonitos. (Entrevistado G)

Reafirmando o uso do procedimento na perspectiva etnocêntrica, é interessante observar a retroalimentação que se estabelece entre a satisfação do paciente e a admiração do profissional em relação à técnica. A maioria dos entrevistados afirmou que todos os pacientes que se submeteram ao clareamento gengival manifestavam contentamento e satisfação, expressos através de sorrisos e/ou verbalizando o entusiasmo com o resultado final: Muito. Eles ficam parecendo crianças, tadinhos. Você precisa ver. Você não faz? Eles abrem um sorriso bem grande! Alguns falam que não acreditavam que ficaria tão bom. As mulheres são mais falantes. Elas ficam todas se achando o máximo. O clareamento deixa mesmo o paciente mais bonito. (Entrevistado A)

Muito. Eles gostam muito dos resultados, fica realmente bom. Eu pergunto o que acharam e eles dizem que está ótimo, a gente vê a satisfação na cara deles, não precisa dizer muita coisa. (Entrevistado H)

Reiterando o destaque da técnica, estas falas acobertam a descaracterização de alternativas de distintas ordens de beleza, adstrita às diferenças étnicas. Nesse sentido, parece que priorizavam a beleza do branco em detrimento de outros grupos "raciais". Como afirma Mandarino14, O senso estético é influenciado pela cultura e auto-imagem; o que é considerado belo por uma civilização pode ser extremamente feio para outra. As mulheres obesas já representaram o padrão de beleza em determinada época, sendo que atualmente as modelos de sucesso são bastante magras.

Sem pretender justificar esses posicionamentos (afirmativos ou evasivos), solicitamos aos entrevistados que tecessem comentários relacionados às correções estéticas na população negra. Negando sumariamente o caráter racista da indicação da prática, sob os imperativos da técnica, alguns entrevistados destacaram que "A área da saúde não é racista" (Entrevistado B).

Dissociando a relação entre o procedimento do clareamento gengival e sua indicação para negros, os entrevistados argumentaram que "Os orientais também apresentam pigmentação na gengiva" (Entrevistado D).

Os entrevistados reafirmaram que a presença da melanose racial é antiestética, sendo significativo o depoimento: Você pode falar o que quiser, dizer que eu sou racista. Mas se eu tivesse a gengiva pigmentada eu já teria feito o clareamento gengival. (Entrevistado C)

Numa outra vertente, explicitando a perspectiva etnocêntrica de suas concepções de beleza, alguns entrevistados assumem que: Se os negros querem ficar parecidos com os brancos, é por que os brancos devem ser mais bonitos. (Entrevistado O).

Numa variante dessa vertente, alguns entrevistados justificam a prática do clareamento gengival em função das demandas do próprio negro: Não é o branco que quer que o negro se pareça com ele. É o próprio negro que quer se assemelhar ao branco. (Entrevistado A)

Trata-se, nesse caso, da percepção do movimento do embranquecimento que constitui, na verdade, a contraface do preconceito explícito.

Ao justificar a realização do clareamento gengival explicitando ou negando o caráter racista do procedimento, reafirmam, em nome da técnica, a valorização do padrão branco de beleza, reproduzindo o preconceito implícito nas relações sociais vigentes na sociedade, seja na perspectiva do branco como do negro.

Considerações finais

No contexto do debate nacional em torno da questão da exclusão social, na qual se inscrevem proposições como as Políticas Afirmativas ou as Reformas Curriculares, contemplando o incentivo à atuação responsável, a presente investigação enveredou no plano da identificação de posturas etnocêntricas no espaço do cotidiano da atividade profissional. Em caráter exploratório, o trabalho sinalizou, especificamente, a valorização do padrão branco de beleza na formação e na prática do clareamento gengival, no que tange ao ensino e prática da periodontia.

A consulta aos livros-textos que apóiam a formação profissional dos dentistas evidenciou a ausência de consideração dos diferenciais étnicos de beleza, descortinando o espaço para absolutização do padrão branco de beleza. Em nome da supervalorização da técnica, tida como neutra, a recomendação do clareamento gengival no ensino se faz, assim, abstraída das condições sociais nas quais se inscrevem as relações dentista-paciente, obscurecendo as preferências estéticas em relação às diferenças étnicas.

Imprimindo a racionalidade biologicista que preside à saúde, o intervencionismo tecnicista - particularmente no contexto da prática liberal - é reforçado pela associação entre beleza e saúde, que consubstancia a patologização das diferenças. Sem desmerecer a liberdade de acesso à técnica, legitima-se, nestas condições, a opção pelo branqueamento tanto da parte do profissional como dos pacientes negros. Omitindo ou relegando ao segundo plano a normalidade da pigmentação melânica, em meio à desconsideração da diversidade étnica de beleza, a oferta, assim como a demanda pelo clareamento gengival, alimentam a hierarquização presente nas relações sociais interétnicas de nossa sociedade.

O clareamento gengival se inscreve no âmbito da preocupação da estética, inerente à profissão, associada ao "sorriso bonito", dimensionado em função do caráter funcional e saudável. No quadro da desconsideração das diferenças étnicas, estas concepções demarcam o espaço para posturas etnocêntricas, seja quando os profissionais parecem assumir a desqualificação da beleza negra em detrimento da branca, e/ou responsabilizam os próprios negros que demandam o clareamento gengival em nome do embranquecimento, seja quando negam ou não assumem conscientemente o caráter racista que pode estar embutido na indicação do procedimento, alegando que a melanose não é exclusividade do negro ou que ela é um produto decorrente da valorização da beleza global. Esta negação se inscreve na ausência da consideração do racismo no âmbito da cultura da cordialidade brasileira que coincide com a absolutização da beleza - que se reduz, nestas circunstâncias, a escolhas individuais em detrimento do reconhecimento dos padrões socioculturais.

O clareamento gengival não é propriamente uma prática frequente - ao menos - na periodontia, atribuindo-se tal restrição ao desconhecimento e/ou à limitação de acesso da população negra - principais demandantes do procedimento - aos serviços privados da odontologia. Apesar da limitada frequência, o clareamento gengival se constitui num caso exemplar por referência à (re)consideração do ensino na graduação em odontologia. No contexto das reformulações curriculares, ressalta-se, a propósito, a propriedade de ver tratada a questão da estética para além do senso comum. Esclarecer sua vinculação com a realidade social concreta e histórica contribui para ampliar o debate em torno da exclusão social e do convívio com a diferença enquanto componentes da formação para o exercício socialmente responsável da prática profissional.

Colaboradores

ED Bolla participou de todas as etapas da pesquisa, P Goldenberg participou da elaboração do projeto até a confecção do presente artigo.

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Artigo apresentado em 14/11/2007
Aprovado em 21/08/2008
Versão final apresentada em 29/10/2008



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